Na nova rubrica ROSTOS DA CORRIDA, damos a conhecer quem vive a corrida com paixão e neste caso, com uma boa dose de ironia e inteligência.
O protagonista é Pedro Caprichoso, engenheiro, corredor e escritor de humor refinado, que encara o desporto com o mesmo espírito com que escreve: sem filtros, sem clichés e sempre com graça.
Nesta entrevista, fala-nos do seu início na corrida (ainda no século passado!), do amor que encontrou na meta de uma prova, dos tombos na Serra da Freita e das verdades que poucos têm coragem de dizer sobre o mundo da corrida.
Quem és tu (nome onde resides, profissão) e qual a tua ligação à corrida?
Pedro Caprichoso, 45 anos, Esposende, Engenheiro.
Como começaste a correr? Houve algum momento que te marcou?
Infelizmente não comecei a correr porque pesava 220kg e fumava 5 maços de tabaco por dia, pois teria uma história emocionante de superação para vos contar. A realidade é bem menos interessante: comecei a correr no século passado, no ano da graça de 1997. Na altura jogava futebol nos escalões de formação e foi-me proposto, por um colega de equipa, começarmos a correr nas férias grandes com vista a preparar o arranque da época futebolística. Lembro-me de sentir que aquele percurso na Serra do Ladário era o nosso Kilimanjaro. 25 min a subir e 15 min a descer aquilo que, para mim, na altura, pareciam 10km. Anos mais tarde, equipado com relógio GPS, descobri que não eram mais de 4 km.
Qual foi a tua primeira corrida ou prova e como te sentiste?
Terminei o secundário em 1998, os meus pais deram-me um chuto no cu e fui estudar para a metrópole. Deixei o futebol, continuei a correr e, a convite de um colega de curso, fiz a minha primeira prova de atletismo em 2000. Como gosto de fazer as coisas com calma e não dar um passo maior do que a perna, fiz a Meia-Maratona de Viseu, federei-me e fiz uma tonelada de provas nos 12 anos subsequentes, nomeadamente Meias-Maratonas e Maratonas. Até que em 2012 fiz a minha primeira prova de Trail.
O que te motiva a continuar a correr e a escrever sobre corrida?
A minha maior motivação é publicar nas redes sociais e ficar horas a ver os likes a cairem às pinguinhas. Brinco com a pilinha sempre que uma publicação minha chega aos 100 gostos. É assim que eu alcanço os meus objetivos e ultrapasso os meus limites.
Em boa verdade, não acredito na motivação. A falta de motivação é a desculpa dos desapaixonados. Se tens paixão pelo que fazes, não precisas de motivação.
A escrita é algo que me acompanha desde sempre; precede inclusive a corrida. Escrever, para mim, é um exercício de autoconhecimento. É ao escrever que me conheço, conhecendo a minha opinião sobre os mais diferentes assuntos, dos mais fúteis aos mais importantes: da eutanásia à depilação com cera à volta da genitália. Já agora: é sim e sim.
Como é a tua rotina de treinos ou corridas? Tens algum ritual especial?
O treino rende mais se publicarmos todos os nossos treinos nas redes sociais? Não. Mas isso também não interessa. O que interessa é dar a entender que treinamos muito. Ênfase na quantidade. Nesse sentido, há duas estratégias indispensáveis para aumentar a nossa quilometragem semanal: (1) atarraxar o relógio GPS à bicicleta e publicar o treino de ciclismo como se fosse de corrida; (2) conduzir até ao topo do monte mais próximo, sair do carro, molhar a cara, fazer pose de campeão, tirar uma selfie, publicá-la no facebook e conduzir de volta a casa.
Seja como for, o mais importante é a consistência. Treinem muito ou pouco, sejam consistentes: 6 treinos vezes por semana, dos quais 2 treinos intervalados e 1 longo. Não esquecendo a regra dos 80/20: 80% do volume de treino é para ser feito a ritmo confortável. O cliché “No pain no gain” não se aplica à corrida. Esqueçam isso. O resto são detalhes.
Mais do que treinar desta ou daquela maneira, o mais importante (para um atleta amador) é ganhar gosto pelo treino. O treino tem de ser mais importante do que as provas, pois passamos mais tempo a treinar do que a competir. Canso-me de ver pessoas que treinam para competir. Está errado! O treino tem de ser um fim em si mesmo. Treinem bem que a vontade de competir aparece naturalmente. Garanto-vos.
Tens alguma corrida ou momento inesquecível que queiras partilhar?
Tenho, sim senhor. Há muitas histórias memoráveis no repositório do meu blog jurássico. No entanto, ter conhecido a minha cônjuge na meta do Ultra Trail de Melgaço tem de estar no topo das histórias mais inesquecíveis. Tem de estar porque não quero levar com o rolo da massa e dormir no sofá.
Foi a minha primeira prova depois do Covid, depois de 1 ano sem competir, pelo que acabei todo rebentado. Cortei a meta, recolhi a medalha de finisher e logo me deitei, à sombra, na pista de tartan do estádio municipal de Melgaço. E, coincidência das coincidências, ei-la ali, ao meu lado, toda suada e fedorenta… Foi amor à primeira cheiradela.
Qual foi o maior desafio que já enfrentaste a correr?
Novamente, como sou um tipo que gosta de fazer as coisas com calma e não dar um passo maior do que a perna, escolhi os 70km do UTSF—Ultra Trail Serra da Freita para me estrear no Trail. A Freita é perto de casa dos meus pais, à data tinha 3 maratonas de estrada no currículo e julgava, do alto da minha sobranceria, que acabar o UTSF eram favas contadas. Fui ao engano. Caí 10 vezes—sim, contei-as—e pensei em desistir outras tantas. Ainda hoje não sei como, mas lá consegui cortar a meta ao cabo de 11h30—já por essa altura o Luís Mota havia tomado duche e enfardado 3 bifanas no Parque de Campismo do Merujal, local que à data era o ponto de partida e chegada da prova.
A tua escrita é conhecida pelo humor e irreverência. Tens alguma história engraçada ou curiosa de corrida que possas partilhar?
Tenho muitas. Está tudo aqui: TOP MÁQUINA. Ver a rubrica “Rescaldos”.
Pequeno excerto ao calhas:
<<Domingo. 06h00. Tiro de partida e primeira fuga do dia. Um velhote belga tentou isolar-se ao quilómetro zero, mas foi coisa de pouca dura. A EDV-Viana Trail organizou-se no pelotão e anulou rapidamente a fuga ao fim de 200 metros. Isto só comprova a minha teoria de que há 2 tipos de pessoas a evitar nas partidas: (1) os velhos que ainda pensam que são novos e (2) os atletas de ginásio artilhados com tecnologia-de-ponta dos dedos dos pés à ponta dos cabelos. Estas duas espécies de gente fazem de tudo para partir à frente dos outros. Será que acreditam, mesmo, que são os 10 segundos que ganham no arranque que fazem a diferença numa prova de 100k? Deve ser só mesmo para aparecerem na fotografia. É pena, pois os que partem à frente são justamente os mais feios—e as fotografias ficam estragadas.>>
O que mais gostas na corrida?
O treino e a sua simplicidade: bastam sapatilhas, calções e uma t-shirt. Nem é preciso t-shirt: é opcional naqueles dias de verão em que nos sentimos sexys, de mamilos duros e pêlos do peito ao vento.
O que mais detestas na corrida?
A complexidade da competição: o planeamento, a logística e o maximalismo da coisa: ser obrigado a carregar colete, material obrigatório, alimentação, bastões, relógio e mais o raio que o parta.
Que conselho darias a quem está a começar a correr?
Ui, tantos. Assim de repente: publicar todos os treinos nas redes sociais, escolher as provas mais fáceis e com menos concorrência, pedinchar patrocínios, encher-se de kinésio, estampar o nome no equipamento, publicar todas as lesões, tatuar os logotipos das provas, criar página de atleta.
Para além disso, repito o que disse em cima: ganhem gosto pelo treino. Prioridade: primeiro o treino e depois as provas.
Se tivesses de escolher uma frase ou lema que te acompanha na corrida, qual seria?
Se tenho uma máxima na vida é que não basta fazer; há que fazer pelas razões certas. Seja o que for. Só assim as coisas são sustentáveis no tempo. O cerne da questão está aqui.
Todas as razões são boas para fazer desporto, mas há muita gente que corre pelas razões erradas: pelos resultados, pelo protagonismo, pelos pódios. E isso não é sustentável.


