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O muro e a medalha

Neste relato intenso e profundamente humano, Cristiane Busato Smith leva-nos para dentro da experiência crua de enfrentar uma maratona — não apenas a prova em si, mas também os muros físicos e emocionais que surgem ao longo do percurso. Entre encontros marcantes, paisagens de Curitiba e reflexões sobre coragem, persistência e limites, a autora revela aquilo que muitos corredores já sentiram, mas poucos conseguem descrever: a linha tênue entre desistir e seguir, entre a dor e a transcendência, entre a medalha e o verdadeiro significado de chegar ao fim. Uma leitura que vai tocar qualquer pessoa que já encontrou o seu próprio “muro” na corrida… ou na vida.

Artigo da autoria de Cristiane Busato Smith

Na fila para pegar o kit da maratona, encontrei a Ângela, ex-colega da graduação. Nós, da turma do fundo, a apelidamos de “Ângelazinha Certinho” porque tudo estava sempre “certinho” na vida dela. Ela me contou das últimas maratonas – Boston e Londres.

“Já fiz também a de Atenas, imagina a emoção”, disse, prendendo o longo cabelo cacheado num coque. “Mas a melhor de todas foi a da Nova Zelândia, em 31 de dezembro de 1999”, e apontou para a camiseta preta, com letras brancas: New Millennium Marathon Auckland New Zealand. “A prova começou às dez da noite e, à meia-noite, chegamos ao século XXI dando pulinhos de alegria!”

“Nossa, Ângela! Parabéns!”, falei, genuinamente impressionada.

Pegamos nossos kits com os chips e números.

“Oba, o meu é 2099. Nove me dá sorte!”, comemorei.

“Maratonas não têm nada a ver com sorte, Cris”, ela falou com um tom grave. “Você tem certeza de que vai terminar? A de Curitiba é uma das mais difíceis do Brasil: corrida casca-grossa, cheia de subidas íngremes, e o retão da Avenida das Torres é pra matar.”

“Sim, consigo”, respondi, agora sem convicção.

Por que falar isso?  A Certinho me fez sentir uma impostora como maratonista. Será que eu consigo ou mesmo mereço chegar lá?

Saí do pavilhão. A cúpula de vidro reluzia ao sol do meio-dia. Os corredores sorriam como velhos conhecidos e tiravam fotos diante da estufa, o cartão-postal mais popular de Curitiba. A energia da véspera da maratona me contagiou e a voz da Ângelazinha ficou para trás.

Até então eu não pensava em um treino especial. Já havia chegado aos vinte e cinco km e pensei que seria suficiente para fazer uma maratona, mas subestimei a empreitada. Nos dias anteriores, em vez de reduzir a quilometragem, aumentei e apertei o passo, justo o que não se deve fazer. O último treino longo deve ser feito até uma semana antes.

Levantei-me às cinco e abri a janela: o dia estava lindo. Enfim, a maratona!

No Centro Cívico, no ponto combinado, encontrei o grupo de mulheres maratonistas do Facebook. Jaque, a líder, tinha um sorriso que parecia nunca sair do rosto bronzeado, cabelo longo loiro-claro e uma corredora tatuada no braço esquerdo. As camisetas rosa-choque, com a estampa 42,195 km, passaram de mão em mão.

A buzina deu o sinal e o alto-falante anunciou: “Atenção, corredores, boa prova! A contagem começou.” Os maratonistas acionaram seus cronômetros e avançaram em plena euforia.

Começamos juntas, com a Jaque liderando: “Mulherada, começamos devagar, ok”, disse, ajustando o boné. “No final da Sete, a gente se separa e daí perna pra que te quero!” falou alto. A multidão nas calçadas aplaudia, nos animando, mas sempre surgem umas desmancha-prazeres: “Vocês estão correndo ou andando?”, zombou.  “Vem correr a maratona com a gente!”, rebateu a Jaque. Virou para nós e disse “essa ignorante não tem noção do que está falando”.

Nunca amei tanto correr nas ruas da minha cidade – Curitiba, sua linda! As ruas eram nossas, sem carros e sem buzinas. A guitarra do Santana me embalava e Jorge Ben Jor puxava o samba (sai da minha frente que eu quero passar…o que eu quero é sambar). O esplendor da cidade penetrava no corpo junto com o ar gelado da manhã. Passamos diante das ogivas da catedral; no gramado lateral, a estátua de Tiradentes guardava a entrada. Na Iguaçu, manchas de jacarandás roxos, aqui e ali, interrompiam o cinza do comércio. Cruzamos a Praça do Japão ainda mais tranquila e bela do que o habitual. Deixamos os prédios imponentes da Avenida Sete de Setembro até chegarmos à Fonte de Jerusalém, com os três anjos de bronze brilhando no sol. Com aquele montão de endorfinas, tudo era lindo, lindíssimo. Eu havia atingido o nirvana dos corredores, conhecido como runner’s high.

Jaque se despediu: “Mais uns 30 quilômetros, mulherada! Toca aqui!”, falou. “Agora cada uma por si e Deus por todas, boa sorte!” – e disparou feito uma gazela. Depois fiquei sabendo que ela havia acabado a maratona em menos de quatro horas, um tempo excelente para mulheres e homens.

O grupo aos poucos se desfez, cada uma no seu ritmo. Eu era uma das últimas, mas seguia livre, leve e lépida pela Avenida República Argentina, sob o sol que agora estava mais alto. Na porta de um bar, um homem ergue o copo: “Vai uma Antártica, aí, moça?”  Bem que me deu vontade de parar e dar uns goles, mas eu tinha algumas garrafas me esperando na geladeira para brindar o final da maratona.

Enfim, cheguei à Avenida das Torres, cerca de 18 quilômetros desde o início. O percurso de ida e volta seria de uns doze. Olhei para avenida: ela se estendia a perder de vista num monótono cinza. Corri mais um pouco até parar numa banquinha de frutas onde comi uma banana e bebi alguns goles de isotônico. Um corredor simpático, que devia estar beirando os oitenta, disse: “sempre fico no pelotão do fundo; já fiz tantas maratonas, não cronometro as minhas corridas, só me importa chegar!”. Não estou sozinha, pensei.

Passei a contar as torres e postes. Já não havia flores, nem praças, nem monumentos para me distrair. Curitiba, aqui, era feia e áspera. O calor subia do asfalto como vapor.  Os meus lábios estavam secos e o suor ardia nos olhos. Na segunda volta da Avenida das Torres, comecei a trotar, com a sensação de não sair do lugar. As primeiras cãibras vieram. Parei para massagear as pernas. Tentei ignorar, diminuí o passo e comecei a andar. Por que diabos estou fazendo isso comigo? Foi nesse momento que comecei a me perguntar se eu devia continuar. Para amadores, é inevitável hit the wall, ou seja, bater no muro. É ele que divide o desistir e o continuar. O muro requer músculos fortes, persistência, teimosia e respeito. Ele te encara: e aí, quem vence, eu ou você? Lembrei da resposta que dei para a maldita Ângelazinha Certinho: “Sim, consigo”.

Dias antes, eu tinha lido o poema “Pheidippides”, de Robert Browning, sobre o mensageiro ateniense Fidípides, cuja história está na base do mito que deu origem à maratona moderna. O mito narra o “fio da navalha” que Fidípides percorreu correndo para entregar a sua mensagem, antes de chegar à vitória e desabar. Eu também avançava nesse fio da navalha, testando o limite entre continuar e sucumbir.

Tentei respirar em quatro tempos e voltar ao trote.

Mordi o último pedaço da barra, forcei três goles de água e quase vomitei. Senti a respiração encurtar e os batimentos cardíacos subirem. Lembrei que, meses antes, um corredor morrera na Maratona de Boston e comecei a ficar ofegante.

Preocupada, parei num posto de saúde instalado no Teatro do Paiol. O médico voluntário tirou a minha pressão, mediu os meus batimentos cardíacos e disse que estava tudo bem. “Só não se esqueça de hidratar.”

Mas, depois do muro, eu só pensava no pior:

“Tem maratonistas que morrem por beberem excesso de líquido. Chama hiponatremia, né, doutor?”

Ele se voltou para mim e disse: “A senhora quer que eu diga para não continuar?”.

Dei de ombros sem saber se eu concordava ou não com ele. Na saída, uma bicicletista sorridente ofereceu: “Vamos, te acompanho até o final.” Essa abençoada me ajudou a subir até o Jardim Botânico. Parava para me dar água de coco, tentava me distrair contando piadas, das quais eu fingia rir.

E assim fui: corre um pouquinho, anda um pouquinho. Esse pouquinho vai me render mais um quilômetro, tentava me convencer. Vamos, no ano passado você subiu a Muralha da China, mulher. Mas o argumento não convenceu, a Muralha da China não chega perto de uma maratona.

Cada passo agora era um sofrimento. Preciso mesmo chegar ao final? Claro que não, posso simplesmente parar, pegar um táxi, chegar em casa, tomar um banho longo, comer um pratão de miojo e me jogar no sofá. Trinta e cinco km eram suficientes, certo?  Mas não, 35 não são 42,195 km! Reagi agora com microações: solto os ombros, abro e fecho as mãos, giro a cabeça, alongo as pernas, tentando relaxar o corpo e a mente. Volto a inspirar e expirar contando quatro.

A bicicletista me ajudou: “Cris, só mais seis quilômetros e você chega lá. O que são seis quilômetros?” Pensei em responder algo ingrato, mas pelo amor de Deus, se não fosse essa mulher eu já teria pegado um táxi para casa.

Faço barganhas no mais puro pensamento mágico: se eu acabar a maratona, serei um ser humano com propósitos elevadíssimos, viverei saudável até os 100 anos, farei uma contribuição admirável para o mundo shakespeariano e outros delírios.  Devem ter surtido algum efeito, porque, quando dou por mim, já tinha descido do Jardim Botânico, atravessado o Alto da Glória e, minutos depois, avistei o Centro Cívico, a miragem agora a poucos passos. Os famosos 42,195 km!

Cruzei a linha de chegada cambaleando? Não importa. Sei apenas que foram quase seis horas depois da largada, alguns minutos antes de a maratona encerrar oficialmente.

Alguém me deu a medalha na linha da chegada, mas ela já não significava nada. Medalhas são impostoras – muros também. Senti uma exaustão generalizada, reconhecendo que havia exigido demais do meu corpo, e ele agora se revoltava feroz. Entrei numa das tendas preparadas para a chegada dos corredores. “Você está bem?”, perguntou um voluntário, me oferecendo uma barrinha de cereais e água. Com as mãos trêmulas, apertei a garrafa de plástico e derramei a água, que escorreu pela cabeça e pelo peito. Eu não tinha nem sede nem fome.

Saí da tenda, tirei o tênis e vi que uma meia estava manchada de sangue das bolhas que tinham estourado no pé esquerdo. Estendi-me no gramado à sombra de um ipê amarelo em flor, o corpo em calafrios. Pus as mãos no rosto e chorei. Chorei de dor e de exaustão. Chorei e solucei para além da maratona. Será que há muros que não se deve transpor? Esse profundo vazio me acompanhou por dias. Me disseram que o que eu sentia não era incomum – era a chamada depressão pós-maratona.

É difícil imaginar quem eu seria hoje sem ter corrido as minhas maratonas. Aos 65 anos, ainda tenho a sensação de ser uma corredora, embora eu seja uma jogger mequetrefe. Mas o corpo guarda as sensações: o sal do suor secando na pele, o barulho do tênis batendo no asfalto, o ritmo da respiração alinhada, as pernas e a mente tentando vencer a exaustão, a exultação das endorfinas e… a mais pura sensação de estar viva!

 

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