Proponho-vos um exercício: vistam as vossas roupas de treino, saiam à rua, fechem os olhos e comecem a correr.
E que tal? Já se estatelaram no chão? Foram contra um poste, ou atropelaram alguma pessoa? Pararam ao fim de dois passos com medo? Pois então parabéns, acabam de completar a vossa primeira visita ao mundo dos corredores invisuais.
Um mundo que é todo feito de obstáculos que seriam intransponíveis para qualquer um de nós, cheio de sobressaltos porque o próximo passo pode conduzir-nos ao chão e o caminho é feito de incertezas. Só há uma coisa que falta neste mundo, que é a escuridão porque, apesar de quase todos pensarmos que as pessoas invisuais vivem no escuro, é precisamente o oposto: o seu olhar é iluminado por todos os outros sentidos.
O olfato recorda-os que estão a passar na zona da churrasqueira e, por isso, há uma rotunda mais adiante que obriga a um contorno demorado. A audição alerta-os para a proximidade de uma moto com fotógrafos que procura passagem à sua direita. Os pés vão tateando as rudezas do chão, mesmo que haja uma boa porção de sola de sapatilha pelo meio a roubar sensibilidade. Sem esquecer do paladar, que reconhece a localização e o número de quilómetros pelo “buffet” que vai variando em cada posto de abastecimento.
E depois há a memória, que ajuda a situar o corredor a partir de um percurso que foi decorando mentalmente ao longo dos treinos e edições anteriores da prova. “Este empedrado fica perto do hotel, depois há uma curva com tampas de saneamento escorregadias e a seguir uma subida íngreme, que depois vamos apanhar a descer a seguir ao retorno”.
Como todos os outros corredores, vivi anos na escuridão. De olhos firmemente fechados, incapaz de notar o descomunal esforço a que são sujeitos estes extraordinários atletas. Quando muito, dava uma circunstancial palavra de apoio à sua passagem e partilhava comigo o gosto por ver ali um tão grande exemplo de superação.
Só que há sempre um dia em que tudo muda e o meu foi há dias, quando me foi dada a oportunidade de mudar o meu olhar sobre a corrida e, principalmente, sobre o mundo. A equipa com quem tenho o imenso gosto de colaborar – Ímpar Running Team – desafiou-me para ser guia de um atleta invisual na Meia-Maratona de Braga, coisa que faz tremer de medo qualquer um. Mas o mentor do grupo, Herculano Cardoso, rapidamente me tranquilizou. Porque o atleta em causa era um dos mais experientes e acarinhados do pelotão: Hilário Ramos, homem com mais quilómetros nas pernas do que eu e mais 10 iguais a mim.
Uma daquelas pessoas incrivelmente especiais, que reduzem à irrelevância as agruras da vida e que enfrenta destemido qualquer distância, guiado por uma firme vontade que o fez bater recordes nacionais noutras distâncias e noutros tempos.
Tudo ficou mais fácil, o cordão que nos unia era mais corda de reboque para eu não me perder do que propriamente para lhe dar as indicações de que precisa. E as instruções que eu ia verbalizando mais não eram do que a confirmação do que o Hilário já sabia. Mas há sempre instantes em que o guia faz falta, como quando os outros corredores fazem diagonais mesmo à nossa frente, obrigando a travagens bruscas, manobra de especial dificuldade numa pessoa invisual. Ou os que tentam furar à força de ombro, despreocupados com o risco de atirar ao chão quem ali vai.
Para o meu novo amigo foi só mais uma prova e uma aula dada. Para mim foi um privilégio, uma honra, uma lição. Mas também uma descoberta, porque num tempo em que nos focamos tanto em nós próprios – nos nossos resultados desportivos, nas roupas vistosas, nas fotos em pose heroica para Instagram ver – dedicar uma corrida ao outro é uma bênção, uma oportunidade de abrir os olhos. E, acreditem que não há nada mais revigorante do que carregar durante aqueles quilómetros a responsabilidade de emprestar a visão ao outro, sabendo que cada passo mal dado, cada distração minha pode custar uma queda, ou uma lesão que o impeça de fazer aquilo de que realmente gosta.
E é de gosto que se fala, no caso deste herói anónimo que tive o privilégio de conhecer. Não se faz valer da sua situação para qualquer tipo de benefício. Como qualquer outro atleta, paga todos os custos do seu bolso, mesmo que tenha de viajar horas de transporte público e alojar-se em estabelecimento hoteleiro. Porque, para o Hilário, a corrida, mais do que tudo o resto, é só isso: um exercício de autonomia e de liberdade.
Só não o vê, quem vive mergulhado na nossa própria cegueira.