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Correr sem parar, até ao caixão

Correr sem parar, até ao caixãoSempre que passo por um carro fúnebre faço-me duas perguntas.

A primeira é “quanto é que aquilo fará dos 0 aos 100 km/h?”. E a segunda é “quando chegar a minha hora, será que me vão obrigar a andar naquilo, ou aceitarão a minha última vontade que é ter a urna transportada no tejadilho de um Koenigsegg Agera RS?”.

Que é que querem? São gostos. O Mário de Sá Carneiro também escreveu que queria que o caixão dele fosse sobre um burro e, no fim, coitadinho, acabou por morrer numa Cessna, espatifado em Camarate. E daí, talvez esteja a confundir os Sá Carneiros. 

Claro que esta reflexão sobre o meio de transporte do cadáver acaba por ser sempre o catalisador de uma explosão de pensamentos fúnebres que se consome numa palavra: como? Sim, porque todos vocês que estão a ler estas linhas (5 ao todo, pelas minhas contas) já tropeçaram múltiplas vezes nessa questão. Afinal, em que circunstâncias é que vamos ficar a conhecer melhor o antónimo de viver?

Eu não sei como é convosco, mas eu já escolhi a minha. Não é que a escolha seja para aqui chamada, mas pronto, “isto é um suponhamos”, como diz a gente. Ora, o meu “suponhamos” é morrer a correr. De todas as mortes possíveis e equacionáveis, a que mais se me aconchega é deixar a vida terrena durante a corridinha matinal de domingo (também não me desagradava por aí além morrer aos comandos de um Azimut 100 Leonard, ao largo de Amalfi, com a Gal Gadot encavalitada no meu ombro, mas pronto).

Preferencialmente, com 90 e muitos anos e, se não der muito trabalho, num dia de sol e céu em tons de camisola do Porto, com o mar ou uns montes gorduchos na linha do horizonte. Começar a ver tudo turvo e achar que se calhar tenho de passar a correr com óculos, depois ver o chão a aproximar-se a ritmo lento, sentir o perfume da relva (e a própria relva) a fazerem-me cócegas às narinas. Ter, logo a seguir, o peito apertado pelas mãos macias da rapariga que diz “tenha calma, que eu sou estudante de enfermagem… também sou stripper, mas é só para pagar os estudos”.

E, inevitavelmente, sentir-lhe uns lábios carnudos, que se abrem para deixar passar aquele soprozinho com aroma a café e um toque de chiclete sabor a hortelã-pimenta. É tudo o que me basta para ficar empacotadinho e pronto para a ser passado a cinzas e espalhado pela doce brisa da manhã, junto ao marco geodésico lá no cume do monte bonito que eu já escolhi.

Antes isso do que morrer engasgado com o Voltaren entalado na goela.

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Paulo Jorge Dias
Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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