Mais uma volta mais uma viagem. A viagem foi até Berlim, a volta foi a essa cidade carregada de história, talvez a mais conhecida e nem sempre pelas melhores razões. A comitiva da Porto Runners, composta por 10 corredores, viajou até à capital alemã, com vontade de fazer também história, não mundial, não nacional, nem sequer na história do clube. A participação nestas provas serve apenas para fazer história própria, enfrentar a empreitada com respeito, sabendo que no final a mesma nos poderá encher de orgulho pessoal, elevar a nossa auto-estima, sabendo que os nossos filhos e netos se orgulharão de mais este feito, seja agora, seja quando já quando não tivermos a oportunidade de correr a mítica distância de que tanto gostamos.
O nosso pequeno pelotão era do mais variado que se possa imaginar. Desde estreantes, aos que somavam já várias dezenas de maratonas, o certo é que ninguém a encara como sendo apenas mais uma. Parece sempre a primeira. Bem preparados, menos bem preparados, rolar apenas para chegar ao fim, são variados os objectivos, assim como os anseios, as dúvidas e o medo de falhar.
A PREPARAÇÃO
Ao contrário do que eu pensava, preparar uma maratona de verão, não é mais fácil do que preparar uma de inverno. Gosto mais de treinar à chuva e ao frio do que com calor. Acho que os treinos rendem mais, mas talvez seja apenas suposição minha. Para além disso há as férias que nos condiciona de certa forma o plano de treinos e que implica também o treinar mais vezes sozinho devido às férias dos companheiros de corrida. Preparei esta prova em 14 semanas, cumprindo o mesmo plano que tinha feito para a Maratona de Paris em Abril passado. Pareceu-me mais longo e das duas vezes que o fiz, pareceu-me ter atingido o pico de forma 3 a 4 semanas antes da prova. Talvez opte por algo de novo da próxima vez. Durante a parte inicial da preparação estive a contas com uma tendinite nos tendões de Aquiles, que pensei que pudessem deitar tudo a perder. Com calma, paciência e fisioterapia, tudo ou quase tudo se resolveu. O importante é que não foi impeditivo nesta cruzada.
Cerca de metade da nossa comitiva estava alojada a cerca de 14 Km do local da partida/chegada, o que numa cidade tão grande e com uma boa rede de transportes não é problemático. Para além disso, este era um dos hotéis com protocolo com a organização da prova o que fazia com que no dia da mesma teríamos um autocarro até ao local da partida, o que é sempre uma preocupação a menos. Partimos à hora prevista e meia hora depois estávamos muito perto do local do início de mais uma aventura. Digo perto porque o local é tão grande que era impossível chegar mais perto. Estávamos eu, a Conceição Grare, o Filipe Lemos, o João Fortuna e o Jorge Oliveira. Chegados ao local, tivemos que nos separar pois os locais de entrega dos nossos pertences estavam divididos por número do dorsal. Fiquei na mesma zona da Conceição e os outros três seguiram noutra direcção. Combinamos encontrar-nos em local combinado o que não foi difícil. O local era um imenso parque a perder de vista, bem tratado, e ao que soubemos, fora destruído e devastado aquando da 2ª. Guerra Mundial, tendo o mesmo ficado sem uma única árvore. Quase que não dá para acreditar tal é a imensidão de árvores, arbustos, trilhas, sebes e relvados. Lá nos encontramos com excepção da Conceição que desapareceu. Sabendo nós do stress que ela sofre antes da prova e que o local de partida dela era diferente do nosso, seguimos os quatro com a intenção de fazer aquilo que não queríamos fazer nas próximos 4 horas. Nas centenas de WC’s disponíveis era impossível tal eram o tamanho das filas. Tivemos que recorrer à mata, só que até ali era difícil. Não havia um único sítio onde não houvesse gente a aliviar-se. Acabou por não ser um problema porque o à-vontade e a falta de alternativas tudo ocultavam. Acabamos por ir para o controlo do local de partida com cerca de 45 minutos de antecedência.
O local era aprazível, espaçoso e a cerca de 100 metros do pórtico de arranque. Mal chegamos, conhecemos logo dois portugueses vindos de Almada com quem ficamos à conversa. O Jorge Oliveira desapareceu da nossa beira e passados alguns minutos apareceu com mais dois colegas portugueses, da nossa cidade. Incrível, há tugas por todo o lado, mesmo no meio de tanta gente que já começava a ser multidão. Estes dois colegas eram o Carlos Pereira e o Manuel Rocha (Mane), com quem andaríamos durante quase toda a prova.
A PROVA
Pum, soa a pistola, soltam-se os balões amarelos e aí vão 40 mil pelas ruas de Berlim fora. O pelotão fluía sem dificuldade nenhuma, as avenidas eram largas, não houve atropelos nem perigo de quedas. Seguimos eu, o João, o Filipe, o Jorge, o Carlos e o Mane. Fizemos o primeiro Km com a média de 5min11s, baixando nos seguintes gradualmente. Ao Km 3 o Filipe mandou-nos seguir, que não era aquele o ritmo dele. Ficamos reduzidos a 5 elementos. No primeiro abastecimento que surgiu do nada, houve confusão mas não para nós porque quase todos abdicamos de ir à água. Chegamos aqui com média de 4min/50s por Km, o que deu para ver que eu ia mais lento que em Paris. Eu levava as passagens de Paris coladas no relógio para me ir regulando. O meu primeiro objectivo era acabar a prova, o segundo seria fazer melhor tempo do que em Paris (3h18min30s). Não ia de forma alguma obcecado nesse objectivo, aliás as últimas semanas nem me tinham corrido bem, o que me deixava com poucas hipóteses de o fazer. Ao Km 5 eu levava 36 segundos de atraso em relação a Paris. É óbvio que durante a prova não tinha esta precisão, estou a analisa agora, mas eu comparava a média e sabia que a diferença de 4 segundos na média daria mais ou menos esta diferença. Seguimos compactos até ao próximo abastecimento, ao 9 Kms onde havia água e bananas. Não posso deixar de fazer referências à maratona de Paris, ainda muito na minha memória. Aqui os abastecimentos perdem em todos os aspectos em relação à capital francesa. Não estão tão bem assinalados, sólidos só havia bananas, a água é servida em copos que são enchidos de bacias cheias de água vindas de bocas de incêndio (posso estar enganado mas pareceu-me que sim) e os isótónicos, também em copos, eram de qualidade duvidosa. Só provei o primeiro, não quis mais.
Voltando à prova, pouco depois dos 12 Km, perdemos o Jorge. Nos abastecimentos eu tinha grande dificuldade em encontrar o grupo, felizmente eles viam-me bem a mim, já que o adereço de Portugal na minha cabeça fazia-me sobressair dos demais. Nesta altura passamos por uma atleta descalça. Metemo-nos com ela e ela, bem disposta, disse-nos que era mais barato. O Carlos e o Mane eram boas companhias, não conhecíamos o andamento deles, mas aquele andamento parecia ser bom para todos. Eu estava mais lento do que o que pretendia, mas não me estava nada a apetecer alargar a passada. O Mane, tal como eu, estava bastante atento aos pormenores durante a prova, estava sempre a chamar-nos à atenção para casos estranhos. Não muito à frente, chamou-nos à atenção para um corredor ao qual lhe faltava parte da perna na zona do joelho. Há gente com uma coragem…
Entre o Km 11 e 12 houve um abastecimento líquido onde me molhei bastante, inclusivé nos pés. Isso levou-me a uma situação nova, que foi desapertarem-se os cordões da sapatilha esquerda, apesar dos 3 nós que sempre lhes dou. Ainda bem que foi ali, se fosse mais à frente… Avisei o grupo, adiantei-me, tratei do assunto e apanhei-os sem dificuldade.
KM 15
Neste abastecimento de água e fruta deixamos o Carlos por opção dele. Ele não estava bem e não quis arriscar ir connosco. Nesta altura estávamos a rolar à média de 4min/35s por Km e eu estava com um atraso de cerca de 1 minuto em relação a Paris. Estávamos agora três. Eu, o João e o Mane. O João era o que estava melhor. Era ele que impunha o ritmo. Seguimo-lo até aos 20 Kms e aí eu fui para a frente e acelerei um bocado para ganharmos uns segundos na passagem da meia maratona. Era altura de descansarmos a família e os amigos, pois nessa altura seria enviado um SMS automático para os contactos que tínhamos previamente escolhido no site oficial da prova. Perguntei ao João se o tinha feito, ele disse-me que inseriu cerca de 30. Eu tinha-me ficado por metade e todos chegaram a tempo e horas, fosse de quem estava na Alemanha connosco, fosse dos que cá ficaram. Os meus filhos deliraram com os SMS’s que receberam (à meia maratona e no final), que indicava o tempo, a posição, o nome, etc.
MEIA MARATONA
Gente, gente, gente. Impressionante a quantidade de pessoas que se acumulava neste local da prova. Cartazes, buzinas, bombos, bidões, um barulho infernal, mas ao mesmo tempo uma festa arrepiante, que nos faz esquecer o cansaço que começa aos poucos a chegar. Passamos aqui com 1h39m23s o que me fazia estar 1m56s atrasado em relação a Paris. Conformei-me, descontraí, fiz contas de cabeça e vi que o meu objectivo de fazer a minha melhor marca estava posto de lado. Mesmo assim acompanhei o ritmo que ía vivo, fruto do esforço do João Fortuna. O Mane mantinha-se valentemente colado a nós.
Ao Km 25, a rolar por volta dos 4m15s/Km, disse ao João que aquele ritmo não era o meu, que continuasse que eu iria abrandar. Perguntei ao Mane como é que se sentia e ele disse-me que o ritmo estava forte para ele. Fiquei de certa forma satisfeito por ver que não iria ficar sozinho. O João foi-se embora e daqui para a frente e até aos 35 Kms, foi a melhor parte que eu já fiz em maratonas. Começamos a rolar entre os 4m30s e os 4m40s. Eu sentia-me muito confortável e o Mane também, conformei-me em não fazer o tempo de Paris e foi a descontracção total. Relembro que conheci o Mane 5 minutos antes da partida e por isso havia muito para conversar. Soube que era do Porto, que treinávamos nos mesmos locais, que eu não o conhecia, mas que ele me conhecia a mim e principalmente o correrporprazer.com. Conversa puxa conversa e parece que vamos ter mais um atleta na Porto Runners. Correremos também em Novembro a maratona da nossa cidade. Entre um ou outro abastecimento, lá agrupávamos sem grande problema, sempre com muita atenção, pois ainda faltava cerca de 12 Kms para a meta e não me apetecia ir sozinho até ao fim e concerteza que a ele também não. Disse-lhe que para o meu tempo já não iríamos e que iríamos para o dele que era de 3h30m.
KM 35
Eis o quilómetro crucial desta minha maratona. A descontracção fora tal nos últimos 10 Kms que nem dei pelo tempo passar, nem pelo ritmo a que íamos. Olhei para a média a que passei aos 35 Km em Paris e vi 4m40s. Olhei para o relógio e vi a nossa média até aquela altura que era de 4m39s. Nem queria acreditar que estava com 42 segundos de avanço em relação a Paris e que a manter-me assim poderia fazer a minha melhor marca. No entanto este dado era enganador para prejuízo meu. É que eu estava com um desfazamento de quase 500 metros em relação às placas de indicação dos Kms da maratona, ou seja o meu GPS marcava os Kms antes das placas. Isto deve-se ao facto de não andar em linha recta, devido às ultrapassagens que fui fazendo, assim como a ida aos abastecimentos. No entanto, isto deu-me grande ânimo e apesar de saber que não iria ser fácil, propus-me sofrer estes últimos 7 Kms e quem sabe fazer a minha própria história em cidade de tanta história. Mas o melhor de tudo é que o Mane era uma companhia fantástica. Nesta altura eu já o tratava por Mane. Ele disse-me que era Mane para os amigos e eu, embora que prematuramente, já o considerava dessa forma. Ele ia mais cansado do que eu, mas a cada 5 metros que eu me adiantava, virava-me para trás, não falava mas ele via que era a chama-lo. Ele lá colava e lá fomos ultrapassando mais e mais gente, pois nesta fase já se vê muita gente parada, principalmente nos abastecimentos. Depois de duas chuveiradas que resolvemos aproveitar, aproximamo-nos do último abastecimento ao Km 40, onde já íamos em algum sofrimento mas com uma média capaz de nos empurrar para a frente sem termos já grandes forças. O Mane abeirou-se do abastecimento e eu abdiquei dele, tal como tinha feito em Paris. Eu não precisava de água por meros 2 Kms e aqueles segundos poderiam ser preciosos. Disse ao Mane que ia arriscar o meu melhor tempo e ele mandou-me seguir incentivando-me. Entre outras coisas que ganhei nesta minha terceira maratona, foi o perder o medo. Não me lembrei que poderia ter caimbras, que poderia esgotar, nada. Para a frente é que era o caminho. Logo a seguir ao Km 40, a maior lufada de ar fresco que eu poderia ter ganho. A minha mulher e a mulher do Geraldino de bandeira portuguesa em punho e aos gritos quando me viram. Eu ía apressado mas ainda deu para em andamento pousar para a fotografia. Fiquei para posteridade com um ar fresco, não parecia ter feito já 40 Kms.
Quinhentos metros à frente, mais uma injecção de motivação: O Geraldino a gritar incessantemente quando me viu, correu alguns metros, gritou palavras de incentivo e só não correu mais porque o público já era muito. Nesta altura eu já via as portas de Brandenburgo, símbolo da cidade. Estava ainda a uns mil metros e depois eu sabia que seriam uns 300 longos metros até à chegada final. Acelerei ainda mais, doíam-me as pernas mas estava bem em termos respiratórios. A multidão era imensa, milhares e milhares de pessoas sempre a apoiar quem corria. Impressionante a envolvência que a cidade tem com a prova. Passei debaixo das portas já abaixo de 4 min/Km e eis que fico surpreendido com o que vi. As bancadas que na noite anterior tinha visto ali montadas, estavam completamente cheias de gente a bater palmas sincronizadamente. Cansaço, nem pensar. Aquilo foi um anestesia geral. Sprintei como acho que nunca o fiz, levantei a cabeça e fiz os 200 metros de corrida mais agradáveis da minha vida. Se não estivesse a tentar fazer o meu melhor tempo, acho que abrandaria o mais que pudesse para poder apreciar aquele deslumbrante espectáculo. Desde as portas que deixei de olhar para o meu relógio para que ele não me desmotivasse, pensei em correr e no final veria no que dava, eu sabia que estava no limite de Paris. Olhei para o relógio oficial que marcava 3h19m e alguns segundos. Eu sabia que teria 2 minutos a serem descontados devido ao delay da partida. Agora só me faltava dar uns passos, levantar os braços, apontar o número três ao céu e sentir toda a emoção de ter terminado uma das maiores maratonas do mundo, estabelecendo a minha melhor marca pessoal com 3h17m46s de tempo oficial.
AGRADECIMENTOS
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