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O meu joelho amuou e agora diz que se vai embora

Modéstia à parte, sou um excelente ouvinte. Então se for com modéstia, sou um ouvinte como não há igual! Não faz lá grande sentido, mas comigo é mesmo assim. Habituem-se.

Desde que me conheço que me acostumei ao hábito de ser chamado à parte para dar ouvidos a todo um extenso catálogo de lamentos, desabafos, confidências confissões, prega-secas etílicas, problemas desistenciais e por aí fora.

Escuto tudo com atenção — sim, porque eu não sou daqueles que passa o tempo a fazer “hum”, “sim, claro” e “pois”, para fazer figura de corpo presente e para que ninguém perceba que está a espreitar de esguelha para o ecrã do telemóvel, durante a conversa. Oiço até ao fim, processo mentalmente, às vezes devolvo um ou outro conselho mais ou menos inútil e, quando acabo, guardo tudo bem guardadinho no cofre forte da cabeça.

E não adianta virem para aí tentar hackear-me o cérebro que está tudo blindado com o nível máximo de encriptação. A minha boca é um túmulo, daí muita gente dizer que tenho um hálito de Tutankhamon.

Mas há aí pelo meio um interlocutor com o qual eu me reservo o direito de quebrar o selo sagrado da confiança e revelar, sem travões, nem pudores, tudo o que ele me conta na intimidade. Faço-o com total permissão e até incentivo desse meu cliente premium do consultório de psiquiatria improvisado em que as nossas conversas se transformam.

Falo-vos do meu corpo e respetivas peças e acessórios, amigos de longa data, mas muito dados a uma maneira de ser ensimesmada. Raramente falamos um com o outro, ele passa o tempo todo para ali num canto, caladinho, metido na vida dele, e só se solta num momento de maior cumplicidade comigo: quando vamos correr.

Aí, meus caros e caras, o velho corpo abre-me aquele parlafone e só cala a matraca já depois do banho sagrado, tradição de fim de treino. Nunca falha: basta darmos as primeiras passadas para aquele pessoal puxar conversa.

Começa sempre o estômago, que não perde tempo a pedir comida: “Olha lá, tens marmelada? E barras, daquelas com comida de pássaro e chocolate!?”. Engano-o com duas goladas de uma bebida azul que levo no bolso e passo à frente, que já está lá em baixo o calcanhar, eterno saudosista, a lembrar-me a todo o instante das vezes que desgraçou o tendão de Aquiles. “Vai devagar, tolo, que estou aqui com uma picadela”, pisco-lhe o olho e digo que não é nada.

Mas entram logo a matar os pulmões, “ai que a natação é que é bom, que puxa mais por mim, que isto do correr é coisa de velhas domingueiras”. Mantenho a serenidade e explico-lhe que lá na piscina aumentaram a mensalidade um euro e eu que, tenho tanto de teimoso como de forreta, cancelei a inscrição e só volto lá para o ano.

Nisto mete-se ao barulho o coração, hipocondríaco d’um raio, outra vez a lembrar-me que foi por esta idade que a minha mãe teve os dois enfartes seguidos. E eu, que já dei meio ordenado para esse peditório, viro-me para ele e respondo, meio a brincar, meio a sério: “Cala-te mas é, ò con…s de sabão!”.

Mais ou menos pelo quilómetro dez lá se emudecem e ficam só os ossos a ranger, mas isso é falar para não estarem calados. O pior vem a seguir, quando começa a dar sinais de vida o debochado do fígado, sempre a falar das moças, que fazia e acontecia. Agora diz que anda ali embeiçado pelo fígado de uma moça da ourivesaria. “Chamava-lhe uma isca!”, berra ele, feito fanfarrão.

Mas ainda assim um ursinho de peluche comparado com o intestino, músico falhado com a mania que toca trombone, mas sai tudo desafinado. Eu ainda o incentivo: trabalha mais, vai aos ensaios, vê vídeos no Youtube. Mas sei que não adianta de nada, que com ele as coisas entram por um lado e saem pelo outro.

E depois há o joelho, sua alteza, Rainha do drama. Todo o santo caminho “ai, ai, que não aguento mais. Que estou todo inchado”. Eu lá lhe explico que é bursite e que estou à espera de vaga no Centro de Tomografia, para ir fazer a TAC. Mas ele não se cala. Que estas coisas só lhe acontecem a ele, que joelho esquerdo é magrinho e não trabalha nem metade do que ele. Que as pessoas olham para ele e gozam, chamam-lhe badocha. E eu: “Ò pá, deixa lá isso, que gordura é formosura e as forminhas plus size estão na moda e tudo! Mas ele lá volta ao mais do mesmo.

Atenção, isto todos os santos treinos! Domingo após domingo, sempre o mesmo choradinho. Até que, claro, uma pessoa chega a um ponto em que não suporta mais e lá lhe dá um raspanete mais áspero um bocado:

— Olha, não estás contente? Mundo! Porta da rua é serventia da casa. Eu cá me hei de remendar com uma dobradiça velha, daquelas que sobraram do guarda-vestidos que está na garagem.

Ó pá, não queiram saber o escândalo! “Ai, que eu vou-me embora e é já hoje! E tu, se quiseres, arranja uma perna de pau, ou umas merdas iguais às do Pistorius”. E o pior é que meteu isto na cabeça (ou, se calhar, na rótula) e está sempre a armar estrilho para ver se eu me chateio e o mando embora. Até parece um daqueles machos briguentos dos reality shows.

Mas, sabem que mais? Dá-me pena, porque o pobre do joelho agora deixou de se lamentar e passa as noites a chorar de dores, para não dar parte de fraco. Eu nem me apercebi, que quando durmo é como se estivesse em coma. Quem me veio contar foi o pénis, que passa a noite toda a pé, a vigiar a casa, feito cão de guarda.

Velho, enrugado, careca, mas sempre em estado de prontidão e nunca se lhe ouviu um ai, nem ui. Aquele sim é um exemplo para os outros. Se fossem todos como ele…

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Paulo Jorge Dias
Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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