Há coisas que nos acontecem na corrida que são inexplicáveis. As imensas variáveis que compõem a equação de uma prova, por vezes, combinam-se de tal forma, que criam um acontecimento dentro do acontecimento, frequentemente efémero, outras vezes, perene na nossa memória de corredores e de seres humanos.
Andava eu “perdido” em plena serra, deslumbrado com aquela enorme massa de terra que se eleva em direcção ao infinito. Ao longe avistava a Torre, para trás ficava o verde, à minha frente, o branco. Aqui e ali já se avistaram pequenas concentrações de neve. Era Maio, mas o degelo, assim como eu, ainda tinha muito pela frente.
Ia sozinho, como em grande parte da prova.
Com este cenário, os meus ouvidos são invadidos por sons de flautas de cana e tambores étnicos. Estaria já a alucinar? Costuma ser mais para o fim. A música vinha de longe, talvez da Índia, ou do Magrebe. Quem sabe de um Oriente ainda mais longínquo…
Não. Seriam certamente flautas de pastores, que tocavam para espantar a solidão e manter o rebanho unido. As percussões viriam de adufes beirões? Ou de bombos que anunciam a romaria de Verão?
E a música penetrava os meus ouvidos e empurrava-me encosta acima. Fosse aquela corrida um filme, só poderia ter aquela banda sonora.
A música vinha do meu telemóvel. Era apenas o Rão Kyao. Não sei o título, nem tão pouco me lembro ao certo de qual faixa se tratava.
Sei que, naquele momento, foi a música certa.
Não tenho por hábito preparar playlists para as corridas. Não tenho “powersongs” e estou-me nas tintas para o ritmo. Carrego em “Reproduzir Todas” e aqui vai disto. Num minuto estou a ouvir Pink Floyd, minutos depois, Marco Paulo. Preciso apenas de companhia.
Nos Açores dei por mim a cantar sozinho, já perto da meta. Enquanto saltitava alegremente num single track, berrei com o ar que me restava “o Amor é isto e nada mais!” Já com os Capelinhos à vista, a aleatoriedade das milhares de faixas que levo comigo ofereceu-me Ornatos Violeta novamente, “e pudesse eu pagar de outra formaaaaaaa!”
Há também momentos em que tiro os auscultadores e entrego-me ao silêncio, aos sons da natureza e à métrica dos meus passos.
A corrida tem sempre Música e às vezes basta o coração para ouvi-la.
Sobre António Pinheiro
Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.