Esta fotografia regista o reencontro feliz de bons amigos, em Arouca, pouco antes das nove da manhã do dia 6 de Abril de 2024, dia histórico como adiante tentarei comprovar. Todos muito alegres, antes da partida para a Primeira Maratona “Filhos da Freita”.
A fotografia, autoria do competente e dedicado Fritz, foi obtida escassos minutos antes da partida, pouco depois de termos sido carinhosamente acolhidos pelos organizadores, Flor Madureira e José Moutinho, e sob os olhares curiosos de alguns arouquenses madrugadores que haviam já saído de casa, apesar do dia chuvoso e cinzento.
Mais alegres, muito mais, haveríamos de regressar, horas depois, ao centro de Arouca, felizes por cruzar a meta do que se comprovou ser uma dura, mas bela, prova. Adicionada a Maratona da Freita a muitas, e MUITAS, maratonas e ultras, estou certo de que cada um de nós ficou apto a recomendar, à vasta comunidade dos apaixonados pela natureza e pelas corridas de longas distâncias, a nova Maratona “Filhos da Freita”. Passo a explicar porque recomendamos este desafio, antecedendo a explicação de uma breve introdução numa nota muito pessoal, para mais adiante assumir o papel de porta voz não-oficial do grupo representado na fotografia, em nome de cujos elementos me sinto autorizado a prestar o presente depoimento. A leitores com menos tempo, sugiro que optem pelo percurso mais curto, avançando já para o meu testemunho, dois parágrafos abaixo que começa por “Voltei agora…”.
A Freita foi, na minha infância e adolescência, a “minha” Serra, a que eu via diariamente desde a janela do meu quarto na casa onde cresci, no ponto mais elevado de São João da Madeira. Via-a à distância, maravilhado, quando surgia toda coberta de neve no inverno ou vestida de amarelo na primavera. Via-a reflectindo os tons alaranjados dos pôr-de-sol de verão, quando ao final da tarde abríamos as janelas para refrescar a casa: de um lado via-se o mar do Furadouro e do outro a Serra da Freita. Via-a, e sentia o seu apelo, como território montanhoso, selvagem e deslumbrante para o adolescente que eu era, mas de certo modo acessível, pronto a ser explorado. Comecei a conhecê-la em criança com os meus pais, em inúmeros passeios de fim de semana e com eles aprendi a admirar as suas maravilhas e iniciei a exploração dos seus mais belos locais. Ainda criança divertia-me com os meus irmãos a ver quem mais depressa subia ao alto de São Pedro o Velho, cada um procurando um percurso entre os blocos de granito, para depois contemplar o mar e a extensão do planalto. Explorei-a com amigos desde a primeira vez que aí subimos a acampar, aos 14 anos, no planalto, junto ao Caima. Ainda não havia estrada asfaltada e apenas duas vezes por semana uma velha camioneta, creio que do “Calçada” ligava Vale de Cambra a Arouca pelos caminhos da serra. Percorri-a a pé na juventude muito antes de existirem pê-erres ou guê-erres, procurando a nascente do Caima ou as abandonadas minas de volfrâmio ou as sucessivas quedas de água da queda de água da Miz(j)arela, acampando com jovens amigos, lavando no rio os utensílios de cozinha, fazendo uma fogueira, lendo, tocando viola e flauta, inspirados em Jack Kerouac e nos ideais da geração hippie e beatnik. No final dos anos 70 tivemos uma casa alugada em Albergaria da Serra, graças a termos salvo um habitante que havia ficado aprisionado sob uma roda de um carro de bois. Conheci as gentes da serra com quem fui convivendo e na primeira campanha eleitoral da democracia, em Abril de 1975, organizei e conduzi uma histórica sessão de esclarecimento na escola primária, a primeira que um partido político aí organizou, ainda por cima muito revolucionário. Recordo ser surpreendido a meio da sessão pela ousadia das crianças da aldeia que do exterior exibiam os retratos de Salazar e Tomás, guardados num anexo depois de retirados da parede por detrás da secretária de onde eu discursava, parede que exibia ainda os rectângulos de brancura preservada pelos os anos em que aí haviam estado pendurados. E todos rimos com a brincadeira. Nos anos 80 descobri a Freita como santuário para a apanha de cogumelos e foram muitas as excursões com amigos entusiastas. No início dos anos dois mil, conheci-a na nova vertente da corrida de Trail, pela mão e pelo sonho do amigo José Moutinho. Havia conhecido o Moutinho e o lendário Sávio Nora de corridas, treinos e conversas no Parque da Cidade do Porto e foi com emoção que participei na segunda edição e em várias seguintes. Antes tinha participado em várias corridas de montanha, pela mão do amigo Matias, da Guarda, e com os meus mestres Fernando Rocha, Joaquim Dias, António Oliveira, Célia Azenha, Gabriela Ribeiro, Glória e irmãos Serrazinas.
Recordo nitidamente o grau de realização e felicidade que senti ao concluir o meu primeiro Ultra Trail da Serra da Freita, simultaneamente o meu primeiro trail e a minha primeira ultra, de que deixei testemunho numa carta dirigida ao meu filho, dando-lhe conta do novo estatuto adquirido pelo seu pai. Um estatuto de que desde então sempre me orgulhei. Esse texto foi adaptado pelo amigo Vasco da Gama, que dele fez uma dramatização com a qual animou crianças na sua actividade de voluntariado no IPO do Porto. Foi na Freita, há 20 anos, que adquiri o estatuto de trail runner e de ultra-runner. O que tenho a contar dessa experiência ocuparia muitas páginas e evocaria muitas emoções. Até ás lágrimas. Fica para outra oportunidade.
Voltei agora à Freita num novo registo, o de uma maratona de estrada, evento inédito nesta serra que há vinte anos viu nascer o trail e que desde então não conheceu outro tipo de corridas. Uma maratona de 42kms com 1350 metros de desnível positivo. Um percurso circular com partida e chegada no centro de Arouca. Mais uma ousadia atrevida da parte do Moutinho e da Flor Madureira, e claro, da Confraria Trotamontes.
A nova Maratona da Freita aconteceu no sábado, 6 de Abril de 2024. A data fora escolhida na expectativa de que a serra exibisse os encantos do despontar da primavera, colorida, atravessada por regatos abundantes, a queda de água em todo o seu esplendor, céu azul, chilrear de pássaros, mugir das vacas, rebanho, e mistura de perfumes de terra e flores.
Todavia, e contra o que era esperado, foi um dia em que a serra se escondeu por detrás de um espesso manto de nevoeiro que nada deixava ver e em que soltou um vento de rajadas inclementes, frio e molhado. Temperaturas sentidas de cerca de 5 graus e rajadas de vento de mais de 40 Kms por hora. A serra parecia pretender escorraçar os atrevidos maratonistas.
A saída de Arouca ocorreu ás 9 da manhã, sob chuva, enfrentando de imediato uma extensa subida de cerca de 10km, com uma inclinação média de perto de 8% a rivalizar com as subidas de primeira categoria das provas de ciclismo. O “pelotão” foi-se fragmentando em pequenos grupos que enfrentaram a subida com energia, trocando palavras de incentivo, opondo bom humor à hostilidade da serra, num ambiente de entreajuda, ninguém querendo ficar isolado. No início ainda consegui acompanhar os amigos mais chegados, os que posam na fotografia, mas depressa fui perdendo o contacto. Apenas o amigo Pedro Vicente, que não está na fotografia, optou por moderar a passada, fazendo questão de me acompanhar. Generoso, belo companheiro, ficou sempre ao meu lado, conversando, fazendo fotografias e filmando pequenos vídeos com os quais compôs um curto filme que documenta bem a prova.
O primeiro abastecimento surgiu do nevoeiro, ao km oito e meio, tal como esperado, e que bem soube o calor humano com que fomos recebidos, a hidratação, os açúcares e os sais. Uns minutos de pausa e lá voltamos ao que faltava da subida. Os companheiros que não conheciam a serra contavam que o alto da subida significasse um alívio, mas avisei que não seria assim.
E, de facto, mais exigente do que a subida foram os muitos kms que se lhe seguiram ao longo do planalto. Agora sem a protecção que as árvores proporcionaram na subida, no alto de encostas expostas ao vento de sudoeste, à chuva, e sob intenso nevoeiro, as condições eram ainda mais adversas do que as apresentadas pela extensa subida. A visibilidade era de apenas cerca de 30 metros e sentíamo-nos vulneráveis porque pouco visíveis para veículos que surgissem. Felizmente que se corria por estradas remotas e secundárias sem qualquer trânsito a não ser o de veículos dos bombeiros, da protecção civil ou da organização. E esses representavam segurança e estavam avisados para a presença dos corredores. Existiam bifurcações, mas o percurso estava sempre bem sinalizado, ainda que por entre o nevoeiro do planalto houvessem momentos em que ansiávamos por vislumbrar uma fita laranja que comprovasse não nos termos equivocado na bifurcação anterior. Foram-se constituindo pequenos grupos.
Os abastecimentos, bem colocados e abastecidos, surgiam do nevoeiro como oásis e o modo caloroso com íamos sendo recebidos constituía um estímulo muito forte. No segundo abastecimento, em Albergaria da Serra, esperavam-nos o Moutinho e um elemento da Câmara Municipal de Arouca, interessados e preocupados, atentos, cuidadores, empenhados em assegurar a nossa segurança e em prestar apoio e estímulo. Alertados para as condições inclementes no alto da serra, quiseram marcar presença e assegurar segurança. Foi um prazer receber um abraço possante do Moutinho, conversar durante alguns minutos e registar o momento numa fotografia. E dei por mim a parar poucos metros depois de deixar o abastecimento, no reflexo de voltar para trás para recuperar os bastões, pensando estar numa prova de trail e não em estrada. Rimo-nos. Não só a serra não parecia querer acostumar-se a ser percorrida pela estrada como este corredor parecia não estar ainda ajustado a percorrer a serra neste registo.
À saída de Albergaria da Serra fomos avisados pelo Moutinho de que o terceiro abastecimento tinha sido reposicionado, pois no local previsto, nas eólicas, no ponto de mais elevada altitude do percurso, as condições de vento impediam que aí fosse montado. E, de facto pudemos comprovar que assim era, pois, esses quilómetros no planalto foram duríssimos. E quanto ás eólicas, nem as pudemos ver – só as ouviamos e a verdade é que estavam mesmo ali ao lado. Nessa altura ansiávamos pelo início da descida, na esperança de que sendo esta pela face norte da serra, as condições climatéricas melhorassem, nomeadamente esperando correr protegidos do vento.
Dois kms após as ditas eólicas e já no início da descida, lá estava o terceiro abastecimento. E que bela recepção tivemos: os voluntários do abastecimento tinham estado lá mais no alto e testemunhado a inclemência dos elementos e por isso eramos olhados como heróis. Sabendo que tínhamos as mãos enregeladas ajudaram a abrir fechos da mochila e a encher o copo com isotónico. A mim limparam cuidadosamente os óculos, molhados e algo embaciados. Mais uma vez o Pedro Vicente fotografou o grupo de voluntários e corredores e lá partimos, com redobrada energia.
A partir deste abastecimento ainda enfrentamos duas ou três subidas, mas tratou-se essencialmente de descer. E, maravilha das maravilhas, na face norte da serra quase não havia vento e o nevoeiro desapareceu por completo. À medida que descíamos a paisagem revelava-se com grandiosidade: à nossa esquerda uma encosta quase vertical coroada pelas eólicas que havíamos passado lá no alto. À nossa direita o imenso vale onde repousa Arouca. Um pouco para este, o vale do Paiva e Paivô. A norte, ao longe, as encostas da margem direita do Douro. E para proporcionar uma referência de quão alto estávamos, víamos, bem abaixo de nós, a capela da Senhora da Mó, no alto de um monte sobranceiro a Arouca. Se no início, em Arouca a Senhora da Mó se mostrava no alto de uma importante elevação acima da qual só havia nevoeiro, agora estava bem abaixo de nós a revelar o quanto havíamos subido.
A meio da descida deparamos com o quarto e último abastecimento e uma verdadeira festa. Animada pela Adelaide Madureira, como sempre animando com o seu megafone, e pelos voluntários. Fotografia da praxe, animada conversa: uma das jovens voluntárias reconheceu-me de me ter visto na TV/SIC no dia primeiro de Janeiro no banho de mar no Porto, fazendo a apologia dos hábitos de vida saudáveis, e felicitou-me prometendo marcar presença para o ano. Os 8 kms finais foram percorridos com sorrisos e gemidos, pois nas descidas mais acentuadas os travões queimavam os quadricípedes. Mas as mãos já estavam quentes e os corações também.
A chegada a Arouca, lado a lado com o Pedro Vicente, foi maravilhosa pois mal cortamos a meta fomos recebidos com mais um caloroso abraço do Moutinho e logo depois da Flor. Penduraram-nos ao peito as medalhas e fomos cercados por vários amigos que nos felicitaram. O que mais me maravilhou foi o speaker, um jovem que não teria ainda 12 anos, mas que desempenhava a função com uma competência e dedicação notáveis. Uma voz bem colocada e potente, recebendo cada corredor com entusiasmo e rigor. E até deu ordens ao Moutinho! Tem futuro o miúdo e ao que parece também corre; boas influências dos pais. Ficamos por ali, agora com bom tempo, sem frio e com muita animação. O Moutinho e a Flor estavam muito contentes, e nós também.
E foi no regresso a casa que se me tornou claro o que acabara de acontecer: a Serra da Freita reagiu “zangada” à perspectiva de ser (per)corrida por estrada, por asfalto, e não através dos seus belos trilhos. Não queria aceitar que corredores de trail, seus filhos (Filhos da Freita), assíduos trailers em provas ou treinos, traíssem os trilhos percorrendo-a por estrada. Receava que o seu amigo Moutinho estivesse a trocar os seus trilhos pela estrada. Por isso se escondeu sob um espesso nevoeiro e fez soprar um vento muito forte, como que a repelir quem ousava subir até lá acima. Num dia de Abril que deveria ser colorido e primaveril, tudo era cinzento e negro. Mas a realidade é que os corredores assumiram o estatuto de “Filhos da Freita” e não se zangaram, antes riram e brincaram, divertidos, com as inesperadas adversidades. Adversidades que os fizeram sentir mais fortes, mas também mais humildes perante os ditames da serra. E como que a Freita acabou por se aperceber de que não fazia sentido rejeitar a mudança, de que os ousados maratonistas a estimavam e haviam vindo atraídos pela nova experiência de a percorrer por estrada. E foi por isso que, lá no cume, nas eólicas, a Freita acabou por nos aceitar, dissipando o nevoeiro, calando o vento e revelando a sua majestade e beleza. E foi numa harmonia entre os corredores e a Serra que se processou a descida até Arouca. A Freita percebeu que não se tratava de traição, mas apenas de uma nova modalidade e que quem ali estava para a maratona, voltaria para os trilhos, os trails, os trekkings ou as caminhadas.
E, tal como o Carlos Sá, que um dia se decidiu a experimentar levar a cabo uma maratona de estrada de montanha, numa serra onde até então apenas organizara trails, introduzindo a Gerês Extreme Marathon, também o Moutinho se aventurou, este ano e em boa hora, a organizar uma maratona de estrada de montanha, também após anos e anos exclusivamente dedicados ao trail, criando a Maratona Filhos da Freita. Faço votos para que ambas as provas perdurem e nos permitam percorrer estas belas serras com os olhos na paisagem e não preferencialmente no chão. A meu ver, maratonas ou ultras de trail & estrada podem coabitar em harmonia numa mesma serra, acolhendo aqueles que sabem colher os benefícios de cada uma das disciplinas.
É o caso dos amigos corredores que posaram para a fotografia que ilustra este texto: sem contar com o elemento mais jovem, o António Pinheiro, agachado ao meu lado e que descreveu a sua prova num texto muito inspirado (que só li depois de ter redigido este e no qual muito me revi), os outros sete totalizam cerca de 1700 maratonas ou ultras (à conta, é claro, das 800 do Tiago Dionísio), merecendo por isso algum crédito quando avaliam uma prova. E a partir deste dia, vários de entre nós passamos a poder ser apelidados de “Netos da Freita”. Obrigado ao avô Moutinho e seus confrades!