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O Cãorredor

Diz a gente que o cão é o melhor amigo do homem, mas eu cá não alinho nessas confianças. Tenho por aí um canídeo e tratamo-nos sempre na terceira pessoa – “dê a patinha”, “sente-se, se faz favor”, “despache lá o xixi, que está a chover” – e até quando ela me ladra eu repreendo-a logo: “não é ‘au, au’, para si é ‘senhor au, au’, tá a perceber!?”.

Mas reconheço que estas personagens caninas lá têm a sua utilidade, seja a desviar os invisuais dos postes da rua, a farejar coca em malas vindas da América Latina, nos aeroportos, ou a escorraçar vendedores de telecomunicações e testemunhas de Jeová que nos batem à porta a horas impróprias.  

O que eu não imaginava, era que estes cãopinchas dessem excelentes companheiros de corrida. Corredores já sabemos que eles são. Eu, pelo menos, em não sei quantos anos de corrida já fui perseguido por uns quantos patudos enfurecidos, mas também por todo o tipo de animais. Gatos, ratazanas, gaivotas, javalis, maridos ciumentos e por aí fora.

Felizmente, a coisa resolve-se com meia dúzia de gritos e uma ou outra pedrada – calma aí, ó defensores dos animais, que as pedradas estão reservadas para as manadas de maridos desconfiados e em fúria. 

Ora, foi no meio deste zoológico que me segue durante o meu pezinho de corrida, aos domingos de manhã, que surgiu essa espécie nova e, para mim, desconhecida: o cão amigalhaço. Num dia como tantos outros, saltou-me ao caminho um dos muitos escanzelados que essa matilha de donos cretinos costuma largar ao abandono no parque industrial onde corro.

Ainda antes de lhe ver a silhueta em tons baunilha, ouvi-lhe o arfar que bastou para me pôr em guarda. Depois de perceber que não era nenhum camionista devasso a ver a sua dose matinal de porno refastelado na cabine do DAF arrumei a navalha no bolso e lá me deixei ultrapassar pelo apressado canito, cedendo-lhe a via mais à esquerda, pois era para esse lado que ele trazia a língua e que eu interpretei como sendo o pisca-pisca canino.

Só que o diabo da criatura, em vez de seguir o seu caminho – ou de fazer pontaria às minhas canelas, como os outros – opta por instalar-se confortavelmente na minha ala esquerda e por lá fica, a reboque do meu domingueiro ritmo. Passam-se 500 metros, mais 500, outros quinhentos e lá se aguenta o cão, sem abrandar o passo, aqui e ali a espreitar-me pelo canto do olho, meio gozão, meio impaciente, como quem diz “ouve lá, tu não és muito pálido para seres o William Carvalho!?”.

Como não estou habituado a ter companhia no treino desde que o meu amigo Mingos se finou – que é como quem diz, trocou a corrida pelo ginásio – não fui propriamente acolhedor com o animal e até esbocei um ou outro “xô!”. Mas o mais certo é ele não ter percebido, porque os cães todos acham que eu tenho sotaque inglês e pode ter pensado que era algum elogio: “Show” (como quem diz, “tás a dar um show do cara… ò Boby!”).

Passaram-se os quilómetros e lá se aguentou ele. Até que, à passagem da légua – 5 kms na versão portuguesa -, achei boa ideia esticar a corda e baixar o ritmo para os 4,30. “Já foste!”, pensei eu ao deixar de ouvir o patatan das patas a bater no chão e o arf, arf da respiração ofegante.

Qual quê!? Nem meio minuto depois espreito por cima do ombro e vejo-o disparado que nem uma bala, como se viesse o Li Peng do restaurante chinês atrás dele, disposto a torná-lo no prato 45 do menu. Afinal, tinha sido só uma paragem técnica para esvaziar a bexiga – habitua-te, rafeiro! – e para namoriscar uma labradora loiraça, cuja dona o escorraçou com semelhante pisadela no chão que deve ter aberto mais uma rachadura no já de si massacrado alcatrão.

– Gajas, pá! – tentei eu consolar a criatura, habituando-me já à ideia de que o ia ter comigo até ao fim.

Ora, se ele ia ficar por ali um tempo, havia que arranjar-lhe um nome. Vamos lá então! Kipchoge não, porque o homem pode ficar a saber e não achar graça a eu ter dado o nome dele a um cão e, depois, nunca mais me fala. Andei, andei, até chegar ao óbvio: magrinho, clarinho, resistente com poucos, Zatopek! Tá feito!

A partir daí foi pôr a conversa em dia: “ai e tal, já viu o preço a que está o Royal Canin?”; “que escova é que o seu dono usa para lhe deixar o pelo assim?”; ou “já pagou as quotas do Sindicato Anti-pulgas”? Coisas dessas. Ah e também o aldrabei um bocado com histórias de cães que foram só dar uma mijinha e acabaram por correr acidentalmente maratonas. 

Fiquei com a ideia de que ele ficou entusiasmado com a ideia (arrebitou um bocado as orelhas, mas também pode ter sido uma nuvem de mosquitos que nos andava a rondar). Mas como acontece sempre nestas coisas, a corrida acabou-se quando a gente se começava a divertir com aquilo.

Como havia afazeres a mais e domingo a menos, lá me separei dele, não sem antes lhe matar a sede com um balde de água do cemitério, despedindo-me ali com um “Domingo, à mesma hora!?”, ao que ele respondeu com um “Auf”. E que eu devia ter corrigido com um “para si é senhor Auf, se favor”, mas deixei passar porque, bem vistas as coisa, já não éramos dois estranhos.

Mas antes cãompanheiros de corrida.

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Paulo Jorge Dias
Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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