Senti que deveria ir em último, mais ou menos, a meio da prova, quando as distâncias se separaram. Deixei de sentir gente atrás de mim e de ver gente à minha frente. No topo de uma subida olho para trás e vejo, muito ao longe, a Sandra e duas camisolas vermelhas. “Os vassouras”, pensei.
Tive a certeza que era mesmo o último quando as camisolas vermelhas chegaram a correr ao abastecimento onde me encontrava a descansar e… a abastecer.
- Fogo… o sr. obrigou-nos a correr!
- Estava a ver que não o apanhávamos!
Não consegui dizer grande coisa, a não ser, perguntar pela Sandra.
- Ah… ela ficou no abastecimento anterior, estava com muito frio e bastante encharcada. Decidiu abandonar por precaução.
Disse para mim que não iria chegar ao fim com aqueles dois estarolas. Mandei-me a correr.
Ganhava avanço, perdia avanço.
Olhava para a frente em busca de alguém. Ultrapassá-lo e deixá-lo entregue aos vassouras era toda a motivação de que eu precisava..
Mas eles vinham como carraças.
A prova entra num curso de água que, devido à chuva abundante daquela semana, estava com o caudal intenso, forte e rápido. Tinha que lutar contra a inclinação, a força e a velocidade da água. A dada altura, o meu pé escorrega e submergi completamente. Tinha agora que lutar contra o frio (era finais de Janeiro, inícios de Fevereiro) e o pânico de ter o telemóvel estragado.
Chegado a terra seca, a minha primeira decisão foi ligar para casa para me certificar do estado do telemóvel e aproveitar para galgar terreno enquanto os vassouras ainda se debatiam com a força da corrente. E foi aí que os comecei a ver: um, dois, três, quatro corredores.
“Já não vou ser o último…”
Estávamos perto do último abastecimento e eu estava decidido a parar apenas o tempo suficiente para abastecer de água. Para ajudar ao meu plano, alguém atrás de mim tinha virado na direcção errada, o que obrigou os vassouras a irem buscá-lo.
“Boa!”
Arranquei do abastecimento a correr sem pensar. Faltavam poucos quilómetros para o fim e eu estava cheio de força nas pernas e na cabeça. Olhava para trás e, se via os outros correrem, eu corria mais. “Não posso ser o último…”
Olho para o relógio. 40km. Só faltavam três para a meta. “3km não é nada…”
Comi o último gel, bebi o que me restava de água e isotónico.
“Estranho… já se devia ouvir a música da meta…”
Continuei a correr, a descer…. Não era suposto, a meta até ficava num sítio elevado.
42km. “Só falta um quilómetro… mas…”
3km. A imensa descida termina e eu apercebo-me onde estou: a três quilómetros da meta e o que faltava era a subir. Estaquei. Só me apetecia sentar-me ali, chamar a minha mulher, que esperava por mim na meta, e ir-me embora. Soltei todos os palavrões e mais alguns.
Então, passaram todos por mim: um, dois, três, quatro… Não consegui reagir. Logo atrás vinham as camisolas vermelhas. Que raio de cor para equipar os vassouras!
Decidi arrastar-me até à meta sem lhes dirigir a palavra. Estava furioso, ao mesmo tempo, desanimado e frustrado. “Sim, sim… vai aqui connosco, já estamos a chegar… coitado, nem fala!” E ainda gozavam comigo.
Fui recebido em festa! O Director da prova veio cumprimentar-me efusivamente.
- Sei que não paguei o almoço… mas posso comer qualquer coisa? Estou esfomeado!
- Claro que sim! Tens direito a tudo!
Sentei-me na tenda dos “comes e bebes”, com a minha mulher e a minha sogra ao meu lado, preocupadíssimas. Eu estava branco como a cera e enjoado. À minha volta ouvia “chamem um enfermeiro, o homem não está bem!”
Enquanto o diabo esfregava um olho, incrédulo com tudo aquilo, mamei um caldo de nabos, uma sande de porco e dois copos de vinho, sempre a maldizer a organização e a prova
- Sou enfermeira. É o senhor que se está a sentir mal?
- Obrigado… estou bem, estava só com fome.
- Tem a certeza?
Gosto muito daquele trail. É aqui perto de casa, organizado por gente muito boa e prestável. Melhoram ano após ano. Nunca repetem o trajecto. Já participei em diversas distâncias e divirto-me sempre muito.
Quando a organização enviou o inquérito de satisfação sobre a prova, tive o cuidado de lhes dar os parabéns, mas alertá-los para o rigor nas distâncias. Mais quilómetro, menos quilómetro, é uma coisa. Três quilómetros a mais, para quem já correu quarenta e três… é martírio.
Foto: JR Fotografia