Eu podia ter sido médico. Quando era miúdo e brincávamos a essa profissão, tudo apontava nesse sentido. Era respeitado, tinha consultório cheio e vinha gente de longe – do outro lado da rua, e assim – só para ouvir o meu sábio diagnóstico e se submeter a tratamentos por mim prescritos.
Claro que, naqueles tempos obscuros, a medicina amadora era largamente incompreendida e a minha carreira como “Doutor Sousa Martins da Rua Sá e Melo” chegou ao fim abruptamente, após uma rusga de um grupo de mães, feita a partir da denúncia do Carlinhos da farmácia, inconformado com a perda de pacientes (leia-se, meninas a quem ele curava os dói-dóis com massagens demasiado localizadas).
Valeu-me que, na época, o meu melhor amigo se dedicava à advocacia infantil e livrou-me logo ali de um processo por exercício ilegal da Medicina. Ainda assim, obrigaram-me a assistir com desalento e horror ao desmantelamento do consultório improvisado, num moderno e bem equipado vão de escadas do meu prédio.
Felizmente, levei esses ensinamentos para a vida e dediquei-me, nas décadas que vieram depois, à prática de uma ciência tantas vezes desprezada, apesar da quantidade de vidas que já salvou. E estou a falar do Endireitismo, uma variante caseira da Fisioterapia, que ao longo de décadas tem curado maleitas tão diversas como tendinites, entorses, nevralgias, escoliose e violência doméstica. Dois abanões bem dados na espinhela das costas e é vê-los a correr porta fora, para pedirem desculpa às mulheres.
Sou orgulhosamente Endireita, mas por teimosia da Ordem dos Curandeiros não ostento Diploma, nem carteira profissional, vendo-me forçado a intitular-me como mero aficionado. Mas como trabalho pro bono – e também pr’á buona -, não há de vir grande mal ao mundo. Ora, é nessa condição que ajudo familiares e amigos a ultrapassarem enfermidades diversas, mas como tenho cada vez menos amigos e os familiares não morrem de amores pela ideia de ficar entrevados, tenho optado ultimamente pela auto-terapia.
Já me curei de tudo um pouco e até me dei ao luxo de ter diagnosticado uma doença até há pouco totalmente desconhecida dos compêndios médicos. Dei-lhe o nome de Hipersaudação – a primeira escolha foi “Maria Gorete” mas depois achei que não ia ficar bem nos manuais de medicina – e é responsável por dores persistentes nas articulações de ombro e cotovelo. Descobri-a, inevitavelmente, em mim mesmo, quando dei por mim a queixar-me dos braços aos domingos à tarde.
Foi um enigma, até porque não faço movimentos repetitivos nem grandes esforços com os braços, tirando um ou outro manguito no trânsito, pelo que se impunha uma análise científica como deve ser. Pois bem, dava-me sempre depois de correr e só quando o fazia nas ruas da minha freguesia – nunca quando ia para fora -, pelo que não demorou até lhe descobrir a origem: o constante erguer do braço para cumprimentar as pessoas cá da terra.
Ele é o senhor do quiosque, a menina da peixaria, o jovem do talho, a senhora da pastelaria, a velhinha que ajudo a atravessar a estrada, o reformado que não sei de onde conheço. Cumprimento-os a todos, não me escapa um! E quando a minha corrida se cruza com o fim da missa aí, então, pareço aquele gato dourado da loja dos chineses, que nunca mais para de abanar o braço.
É, portanto, um mal que só afeta corredores simpáticos (ou políticos em campanha, mas esses merecem-nas todas!), o que quer dizer que os sisudos, que são cada vez mais, estão imunes a ela. Trombudos deste mundo, a vossa parte deste artigo acaba aqui, podem fechar a página e voltar para o livro “Como ter sucesso sem dar confiança a Ninguém”.
– Mas, então, como é que se cura este mal, doutor Jorge Milagres!? – perguntam os leitores, enquanto aplicam gelo no ombro.
Se fosse médico, a resposta era fácil: “Vista-se, tome Brufen de 8 em 8 horas e são 60 euros. Não tenho protocolo com Multicare e depois mando-lhe o recibo para o IRS”.
Como sou Endireita e, ainda para mais uma simpatia, apresento as várias abordagens terapêuticas. Pode optar por um cumprimento oral, mas se forem como eu, que corro sempre no limite do abafo, a única coisa que se vos vai ouvir é “Fom Fia” [muito parecido com um “bom dia” em situação de pré-afogamento]. Também há a solução de passarem a saudar os outros só com a mão, ou um dedo, mas se forem realmente populares na vossa zona, mais cedo ou mais tarde ganham uma tendinite na falange ou no pulso. Ou então, substituírem o cumprimento por um sorriso, mas além do risco de caimbras nos lábios, há a necessidade de manterem a dentadura cintilante e ao preço a que estão os dentistas mais vale aguentar-se à bronca com as dores nos braços.
Finalmente, podem mudar a indumentária, passando a usar gorros e óculos de sol para não serem reconhecidos e não terem de cumprimentar ninguém, com o risco de serem confundidos com ladrões e violadores, incorrendo em exercícios de justiça popular bastante mais danosos e menos passíveis de serem curados por um Endireita. Há quem opte por mudar o percurso do treino, para locais onde sejam totais desconhecidos, ou pura e simplesmente abdicarem dessa coisa em desuso e cada vez menos valorizada que é a educação, deixando pura e simplesmente de cumprimentar.
Eu, por mim, prefiro passar o resto da semana aos “ais” e “uis” pois sou um incurável hipersaudador e dificilmente sobreviveria sem o domingueiro erguer de braço, seguido dos indispensáveis: “Bom dia, sr. Sousa!”; “Olá, menina Marlene!”; “Tudo bem, Barbosa!”; “Ora viva, jovem casal que estacionou o carro à entrada da mata!”.
E todos sabemos que a melhor parte de correr é continuarmos a ser nós mesmos, com a diferença que vamos um bocadinho mais depressa do que no resto do tempo. Bom treino e bons cumprimentos.