...

Acima das nuvens não chove

…ou como ser feliz na tempestade.

Sábado de manhã. Seis horas.

Levanto-me a medo. Foi uma semana de extremo cansaço físico e psicológico. O corpo debateu-se dois dias com sintomas gripais. Na véspera, preparei o equipamento mas sem saber se teria forças para ir correr.

“Olha… vamos…”

Uma prova atípica. Feita em estrada, Freita em estrada.

Pouca gente na linha de partida, mas um elenco de luxo. “Nesta foto estão duas mil maratonas!” E eu encolhido ali no meio de um conselho de decanos.

Freita é Freita.

Num gesto de cinismo, a partida da prova é a descer, umas poucas centenas de metros, até que “acabou-se a brincadeira”.

Arouca fica para trás e lá, o mundo dos mortais. A corrida deixa de ser corrida e transforma-se numa solene liturgia, preparada pelos Sumo-Sacerdotes José Moutinho, Flor Madureira e seus Acólitos, ao poderoso Deus que habita o alto da Freita. Um Deus casado com a Serra. Nada clemente, nada compassivo, rápido para a ira e curto de misericórdia.

A realidade fica para trás e inicia-se um ascendente mergulho ao sobrenatural.

“Vinde a mim todos vós que correis e eu vos empenarei.”

Correr na Freita, mesmo no alcatrão e nos paralelos, é sempre transcendente. É chegar ao Céu pelo Inferno. Beijar Deus e abraçar o Diabo.

Subo e eles passam por mim. Devo ser o último, por esta altura. Ou talvez não. Não importa. A vitória não está na posição em que chegas, ou no tempo que fazes. Está naquilo que aprendes ao subir, naquilo em que te transformas lá em cima e naquilo que vives ao descer. Aprender. Transformar. Viver.

Olho para o cimo e vejo os cumes cobertos por nuvens. Sou esbofeteado pela chuva e penso, ingenuamente, “acima das nuvens não chove”.

Os quilómetros passam no relógio. Se já não via ninguém atrás de mim, agora deixo de ver à frente. Um corredor vem em sentido contrário. “Queres ver que já me perdi, ou é alguém que o Deus da Freita já derrotou?”

Em frente até ao cimo. A estrada fica plana. “Aplanai os caminhos do Senhor! Endireitai as suas veredas!” E é aqui que o Deus da Freita solta a sua fúria. O vento vem de todo o lado. A visibilidade é reduzida. “É a descer! É a descer!”, grita um Acólito na bruma. Tropeço nas minhas pernas. Uma e outra vez. Sou empurrado para fora da estrada. Os Elementos parecem ter vida própria, querem expulsar da Serra aqueles que se atrevem a desafiá-la. O Deus da Freita no papel de Adamastor.

Ando aos ziguezagues na estrada. A intensidade do vento abafa a música dos meus auscultadores. Olho repetidamente para trás, com receio de algum carro. Não vejo ninguém. Ninguém me vê.

Acima das nuvens não chove, mas dentro das nuvens é o coração da tormenta.

Habituo-me a isto. Sinto-me bem. Sinto-me imensamente feliz!

Os quilómetros passam no relógio. Ganho cada vez mais confiança. Estou na mansão do Deus da Serra. Tenho que jogar com as regras dele.

A bruma é de tal forma densa que, das imponentes eólicas, plantadas mesmo ao meu lado, vislumbro apenas a base. Ouço o silvar das pás a rasgar o Céu.

Até que começo a descer novamente, abandonando o carrossel do planalto. O Deus da Freita aponta-me a porta de saída. “Vai em Paz e que a Dor te acompanhe!” A minha penitência estava cumprida.

Vejo ao longe um ponto verde. Finalmente, não estou só. Se sou o último, vou deixar de o ser. Afinal, acabei de brincar ao toca-e-foge com uma divindade.

“Agora sobe só um bocadinho e depois é sempre a descer. O pior já passou.”

São generosos os Acólitos do Deus da Freita. O bocadinho não é assim tão bocadinho. Agora está calor. Livro-me das vestes protetoras contra a intempérie.

Corro e os músculos doem cada vez mais. E quanto mais doem mais corro. Arouca está tão perto. Sou alcançado por mais um Peregrino. Não aquele que eu tinha deixado para trás. Outro. Afinal, eu não era mesmo o último. Nem seria.

Volto a Arouca. Volto à realidade. Ao mundo dos mortais. Volto à corrida.

A Teresa e o Eduardo já acenam ao longe. A minha Peregrinação está terminada.

P.S. – Como já escrevi noutras alturas: A Freita é a minha peregrinação, a minha transformação. Há quem vá a Fátima, a Santiago; há quem faça terapia, jejum e abstinência. Eu passo um dia na Serra.

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António Pinheiro
António Pinheiro
Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

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