Quem anda à chuva molha-se e quem corre também. E não me venham falar de impermeáveis de alta tecnologia, com tecido ultra-hiper-repelente de água, igualzinho ao que usam forças especiais, mergulhadores ou gente detesta andar encharcado.
A não ser, claro, que recorram a um truque que só eu conheço e que me disponho a partilhar convosco a troco de uma módica quantia. Estarei a ouvir uma carteira a abrir-se? Não? Bando de forretas! Mas como acordei generoso, aqui vai a única maneira de alguém andar a correr à chuva sem se molhar.
É muito simples, aliás. Basta a pessoa sair de casa de madrugada, fazer o seu treino normal e voltar – ensopado dos pés à cabeça -, ainda a tempo de apanhar a família inteira a dormir o soninho dos justos.
Depois, é tudo uma questão de libertar o sociopata que se esconde dentro de cada um de nós: entrar em casa de mansinho – de preferência pela garagem, ou lavandaria -, limpar com minúcia toda e qualquer prova do crime (se tiverem secador de roupa estão safos, se não, o improviso é o vosso mestre) e, claro, ensaiar a mentira na ponta da língua, sem contradições nem engasganços. Talvez uma tosse, ou outra ainda lance a suspeita, mas as alergias da moda têm sido o meu fiel álibi e acredito que não vos vão deixar ficar mal.
Mais cedo ou mais tarde, a família há de acabar por acordar e nessa altura já estarão secos que nem um grão de areia do Sahara. E por muito que eles o queiram vergar ao óbvio – “ó pá, então foste correr no meio de um dilúvio destes [apontando para a rua] e queres convencer-me que não te molhaste!? – pode socorrer-se do mais puro descaramento e explicar, com o maior desplante, que só começou a chover nem há cinco minutos. A seu favor tem a clássica e fiável desculpa da falibilidade de Institutos de Metereologia (e apps de telemóvel que deles se alimentam).
Caso tudo falhe, os meus parabéns! Reprovou miseravelmente, já que não é capaz de enganar nem uma família de estremunhados, ainda anestesiados pelo torpor de um amanhecer dominical. Está condenado a uma vida de corridinhas soalheiras, interrompidas ao menor espirro de anjinho, perdendo irremediavelmente o melhor que a corrida tem.
E o que melhor é esse? Pergunta aquele que nunca calçou as sapatilhas e se fez à estrada num dia em que os donos do céu se lembram de lavar as nuvens à mangueirada. Porque se alguma vez o tivessem feito, já tinham percebido o quão divinalmente sabem aquelas pingas gordas a baterem pelo corpo fora, picando que nem alfinetes. Massagem nenhuma bate isto, meus meninos!
Mas mais do que um prazer, correr – ou simplesmente andar – à chuva é um ato de bravura, de desafio e determinação. Quando o fazemos, sentimo-nos trolhas, pescadores ou trabalhadores do campo, gente áspera que enfrenta a tormenta como se nada fosse, porque é dali que tiram o pão e a roupa para a família. É a nossa homenagem ao povo da chuva, como eu lhes chamo quando passo de carro e os vejo a fazer de conta que a adversidade não é mais do que uma comichão.
E é também um ato de amor, isto do correr quando chove. Porque algumas das coisas mais bonitas que eu conheço fazem-se debaixo de uma impiedosa cortina de água. Ou vocês acham que as pessoas deixam de andar aos beijos na rua só porque começa a chover? Se persistem dúvidas, deixem-me encaminhar-vos para as tão cinematográficas e pluviosas beijocas de um Breakfast at Tiffany’s, um Diário da Nossa Paixão, ou mesmo de um Quatro Casamentos e um Funeral…
Ò pá, com isto tudo até me comovi. Deixa-me mas é equipar à pressa e ir a correr no meio do chuvisco, que ao menos lá de baixo ainda dá para camuflar a lagrimita no meio daquelas pingas todas que se nos passeiam alegremente pela cara.