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Sonho de uma manhã de Outono

O Gerês ficou escuro. A noite abateu-se sobre a Vila e, com ela, nuvens carregadas de chuva, que cerraram ainda mais a escuridão.

Horas antes, a Vila do Gerês pulsava de vida e cor. A voz do Joca troava pelas encostas da serra anunciando mais um pódio, alguém que cruzava a meta, um corredor que, por segundos, deixava de ser anónimo e partilhava com a multidão a sua superação.

Eram os pórticos, a música, as cores vibrantes dos equipamentos.

As panelas fumegantes de sopa, abraços, sorrisos, felicitações. Regressos a casa, ao carro, ao Hotel, com um “andar novo”, porque isto só costuma doer no fim.

Os restaurantes transbordavam, erguiam-se copos, planeavam-se os desafios futuros.

E ao fim do dia, ao olhar pela janela do hotel, enquanto a chuva caía copiosamente lá fora, num Gerês escuro e deserto, pensava na magia de tudo isto. Na multidão de peregrinos que chega, instala-se, vive, corre e parte.

Esforçava-me para recordar a minha prova e ter algo para contar. Mas as memórias daquela manhã, esfumavam-se dispersas, como quando tentamos recordar um sonho.

Lembro-me da partida e de dizer a mim próprio que tinha que chegar a Leonte antes da primeira hora de prova.

Sei que me forcei a correr durante grande parte da subida. Os primeiros da Maratona passaram por mim como um corrupio.

Depois desci para a mata de Albergaria e assustei-me com a velocidade que o relógio marcava.

Dei por mim a subir novamente para o campo do Gerês. Abasteci à pressa. Mandei um whatsapp à família e enfrentei um vendaval que me gelou as entranhas. Como nos sonhos em que sentimos frio, tentei tapar-me, mas acabava sempre por me destapar.

Como nos sonhos em que as personagens mais inesperadas aparecem do nada, a Ester Alves andava a passear lá por cima e disse que agora era sempre a descer. A descer é quando dói mais, mas nos sonhos podemos ignorar a dor. “Não dói, não dói, não páres.”

Mas os sonhos têm um fim. Há aquele momento em que começamos a acordar e a realidade a misturar-se com a ilusão. 

A Meta era já ali. Ouvia vozes, incentivos e passos atrás de mim. Faltava menos de um quilómetro. O Joca anuncia o meu nome, os passos atrás de mim estão cada vez mais perto, acelero, mas sou ultrapassado mesmo na linha de chegada. Ainda fechei os olhos para tentar adormecer de novo, mas já estava acordado e com uma medalha ao pescoço, a oitava em nove edições da Gerês Extreme Marathon.

Para mim, esta prova continua a ser “obrigatória”. É já um ritual de família. Um sonho repetido.

Tem um ambiente único, muito difícil de descrever. É preciso ir lá, calçar as sapatilhas e correr monte acima.

Foto: Willi Becker

António Pinheiro

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António Pinheiro
Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

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