...

Chamava-se Mimi… 

Não foram precisos dois filmes do Top Gun para eu saber que nunca se abandona o nosso “wing man”. Desde miúdo que cultivo o saudável hábito da lealdade e não tenho memória de ter deixado para trás alguém a quem eu tenha dado a minha palavra. É assim na vida, no trabalho e, claro, nas corridas.

Foi com base nesse compromisso de honra que aceitei participar no meu primeiro trail: como homem de estrada que sou, socorri-me do amigo António Pinheiro, experiente corredor de vales e serranias, que garantiu apadrinhamento na minha primeira prova do género: o Trail das Nozes, em Gondomar.

E foi imbuído desse espírito de companheirismo que, mal começou a prova, a primeira coisa que fiz foi abandonar o meu bom amigo e desaparecer monte acima. Sim, que o Maverick bem pode apregoar a entreajuda entre pilotos de F-18, porque se lhe der a vontade de urinar tem um tubinho qualquer onde despeja a bexiga e depois dispara tudo em forma de míssil contra russos, chineses e demais maltrapilhos aéreos.

Já a mim, quando entro em desespero urinário, dá-me para correr que nem um tolo e gritar: “mayday, mayday, Maverick’s in trouble”. Claro que tratando-se de um trail pensei eu que era tudo tão simples como esperar pela oportunidade certa para enfiar por um carreiro qualquer e aliviar-me ali por entre eucaliptos e penedos. Pois, mas mais uma vez enganei-me, porque a manobra requer uma certa dose de privacidade e uma coisa que não imaginava nisto dos trails era que houvesse tanta gente a saltitar pelo monte.

E, sejamos francos, ninguém chega aos 47 anos sem rugas, principalmente na parte exposta ao público em plena mijinha. Só talvez o Tom Cruise, mas esse cobre-se todo de placenta de cavalo ou lá o que é que o deixa assim esticadinho. Havia, por isso, o risco real de eu ser surpreendido por alguma daquelas raparigas giras e de calções encolhidos com as poucas vergonhas à mostra, ainda para mirradas com o frio outonal.

Não me restou alternativa e lá nos fomos aguentando, eu e mais a minha bexiga apertada, no sobe e desce dos montes gondomarenses. E foi aí, ensopado e com os pés enterrados no lodaçal, que percebi a falta que me fazia o meu bom e velho wingman. Pinheiro, amigo, desculpa-me. Estou tão arrependido! Onde estás? Olhava à volta e nem um Pinheiro, só eucaliptos, Barbosas e Carvalhos.

Se há coisa que aprendi a correr com o António é que ele, além de ótimo orientador de prova, é um excelente companheiro: ri-se das minhas piadas, suporta as minhas piadas, não me manda à m… por causa das minhas piadas. Fala comigo de futebol e de outros assuntos de relevante interesse. É o wingman e está tudo dito! Ainda tentei meter conversa com um compincha do lado, mas tal era a quantidade de lama que lhe pendia das barbas que mal se percebia o que pobre homem dizia. 

Vi-me, por isso, resignado a prosseguir com o que restava desses 11 quilómetros na companhia da minha resiliente vontade de urinar. Puxei pela conversa e ela lá foi dizendo que se chamava Mimi e que não era bem isto que queria na vida, que andou a estudar para doença venérea na Covilhã ou Castelo Branco – confundo-as sempre – mas chumbou dois anos seguidos e tentava agora carreira como vontade de urinar, depois de uns meses à experiência como comichão na virilha.

Incentivei-a a continuar, disse que era a vontade de urinar mais agradável que tivera, que até nem me pressionava o lado esquerdo da bexiga como as outras, era mais uniforme, doía por todo, e incentivei-a a voltar a estudar, porque com esforço e treino talvez um dia chegasse a infeção urinária.

Com o escorrer da conversa lá se acabou a corrida, nem custou nada. Mal cruzamos a meta, a vontade de urinar, agora mais relaxada e à vontade, lá confessou que não se importava nada de dar umas voltinhas na uretra da rapariga bonita que nos punha as medalhas ao pescoço. Safadezas…

Como a Mimi tinha pressa, despedimo-nos logo ali, no muro do cemitério onde, entre urina e talvez uma ou outra lagrimita, ela lá me disse que eu lhe fazia lembrar o pai – que vira pela última vez a desaparecer num urinol do Norteshoping -, se calhar porque ele tinha barbas como eu, se bem que as dele fossem maiores e parecessem um pelo púbico encaracolado.

No fim, quando ela já deslizava alegremente para um bueiro, ainda me fez rir, feita parva, a dizer que eu me tinha esquecido de copo e garrafa, por isso ia ter de beber água com as mãos em conchinha… as mesmas mãos que tinham acabado de, enfim.

E foi ainda a sorrir, logo a seguir à segunda sacudidela, que me lembrei do meu imperdoável ato de ingratidão. Tinha prometido ao Pinheiro que cortava a meta com ele, portanto, lá arranquei eu a todo o gás para trás – por falar nisso, levava comigo também uma família de gases, mas essas não eram grande companhia. Entraram mudas, saíram caladas.

– António, amigo, nem tu imaginas quem fez a corrida toda comigo – gritei eu ao encontrá-lo a meio quilómetro da meta.

– Quem? O Carlos Sá? – pergunta ele, sem perder o ritmo sereno e determinado com que começa e acaba todas as provas.

– Não… a Mimi… ah esquece, se calhar não conheces. Vamos lá acabar isto… 

E lá acabamos.

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Paulo Jorge Dias
Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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