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Prego a fundo, senhor Presidente!

Paulo Jorge DiasGosto de ver coisas fora do sítio. Um piano no meio da praia, um fato de treino entre uma multidão de engravatados, um cubo de vidro perdido nas meio das montanhas, o Manafá na equipa titular do Porto.

Só assim se percebe que eu, não gostando nem um bocadinho de políticos, aprecie um punhado deles, mas só quando estão a fazer aquilo que não é suposto ser feito por um político.

Ir à peixaria sozinho, andar a passear de bicicleta na cidade, ir para o trabalho de Metro. Ou, coisa cada vez mais rara: conduzir o próprio carro. Na América, por exemplo, o presidente está proibido de o fazer, mas em Inglaterra não é invulgar ver sua majestade a caminho da missa dominical, ao volante de um massivo Range Rover, apinhado de polícias no banco de trás.

Por cá, o presidente Marcelo inaugurou um estilo informal que inclui umas passeatas agarrado ao guiador do já famoso Mercedes Classe A, de 2015. É essa, aliás, a imagem mais forte que ficou na noite da sua reeleição como presidente: a conduzir, às voltas pela Cidade Universitária, para não ter de atropelar os discursos dos rivais.

Foi bonito e corajoso – noutro dia qualquer, podia muito bem ser confundido com um septuagenário solitário, em busca de diversão instantânea no banco de trás, a troco de uns 25 euros, 30 euros. 

Mas, ainda assim, ficou a milhas de distância do melhor episódio automobilístico de sempre, na História presidencial portuguesa. O protagonista não podia ser outro: Ramalho Eanes (declaração de interesses: é o meu ex-presidente favorito e a única pessoa do ecossistema político à qual consigo associar adjetivos como honesto e impoluto).

Aconteceu na primeira metade dos anos 80, num serão onde o general acabava de jantar, em Belém, com o deputado e professor universitário Barbosa de Melo, que lá terá ido ensinar-lhe uns truques sobre como travar as fintas do então primeiro-ministro Soares, sem fazer falta merecedora de cartão amarelo.

A conversa esticou-se pela noite fora e Eanes, que não gostava de empatar ninguém, dispensou motorista e secretários, ficando a casa reduzida aos serviços mínimos de um segurança. Fez-se hora de ir levar o professor ao Comboio – tinha aulas em Coimbra no dia seguinte, logo de manhãzinha – e Ramalho logo pede ao guarda-costas para lhe preparar o carro.

Chegados cá fora, o presidente acomoda o convidado no banco de trás do velho Mercedes e dá de caras com o envergonhadíssimo agente do corpo de segurança da PSP, que era homem capaz de o proteger de tudo, menos de um tremendo embaraço. Lá lhe confessou que tinha carta acabada de estrear, mas quase nenhuma prática e não podia garantir uma viagem sem sobressaltos. 

– Não tem mal nenhum, homem! Passe para cá a chave! – terá dito Eanes, antes de saltar para o banco do condutor e arrancar rumo a Santa Apolónia.

E foi assim, quase 40 anos antes do inofensivo passeio de carro do presidente Marcelo, que o general se fez ao caminho. Ao volante da viatura de estado, com uma bandeirinha nacional de cada lado, enfrentando o trânsito lisboeta tão destemido como nos tempos em que combatia os insurgentes da Guiné.

Paulo Jorge Dias

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Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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