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Nem todos somos corredores kamasutra

Se querem que eu vos reconheça rapidamente sempre que interagem comigo há duas coisas que nunca – mas mesmo NUNCA – me devem dizer, no início da conversa:

Seu cabrão, eu vi-te a olhar para a minha mulher!

e

Lembra-se de mim? Você ajudou-me daquela vez!

Se querem mesmo que eu vos reconheça, esqueçam lá isso. Por aí não chego lá, pois na verdade são dois atos que me saem tão naturalmente como respirar e praguejar.

Ora, nem de propósito, cobiçar a mulher do próximo e ajudar o próximo têm ambas lugar cativo nos catecismos e referências bíblicas. Fosse eu um fiel e já teria pago as prestações todas de um T1 no Céu… para logo ver o imóvel penhorado por conta das repetidas infrações ao disposto no 9.º mandamento.

E se da primeira – a cobiça de fêmea alheia – me abstenho de comentar, por haver a remota probabilidade de alguém lá de casa ler isto (muuuuito remota, mas ainda assim nunca fiando), já a segunda – dar a mão a quem precisa – falo dela sem pingo de pudor. Não como exercício de autocontemplação ou vaidade, mas por dizer muito, ou quase tudo, sobre a forma como escolhi encarar a corrida.

Nestes aninhos que levo a derreter sapatilhas já fiz de tudo um pouco: tirei pessoas de carros batidos, amparei atropelados, devolvi telefones perdidos, ajudei velhinhos desorientados, levei a casa cães tresmalhados e sei lá mais o quê. Não há mês em que o treino de domingo não seja posto em pausa para dar uma mãozinha aos menos favorecidos.

Nem mesmo em ambiente de corrida desligo o modo 112. Dei por mim umas quantas vezes a voltar para trás, porque alguém precisava de reboque ou curativo, sem querer saber de tempos ou lugares na classificação. Sim, porque se há grupo onde não me encaixo é no dos corredores-Kama Sutra. Assim chamados por correrem sempre obcecados com as posições: 105.º da geral; 13.º do escalão etário; 2.º na sub-categoria dos corredores que usam meias às pintinhas amarelas.

Mas de ainda sobrar alguém convencido de que escrevo isto numa lógica de autoelogio, ou a fazer-me descaradamente a medalhas de mérito, palmas, palmadinhas nas costas, o meu conselho é que não se metam nisso. Quero lá saber de comendas e mordomias, quando muito gostava era de recrutar mais umas alminhas para a causa, que a generosidade é como a construção civil: debate-se com a crónica falta de mão de obra.

Para vos ser honesto – e fique já eu aqui ceguinho e impotente se isto não for verdade! – o que eu quero realmente é lembrar-vos que na tribo corredora ainda resistem uns quantos anjos da guarda bem mais altruístas e corajosos, que dão aos outros tudo o que é deles e mais houvesse. Esses sim merecem as minhas e as vossas palmas!

E sem esperar nada em troca, nem sequer um “obrigadinho, pá!”. Faz-se o que há para fazer, com o propósito de travar aquela comichão medonha que nos aflige cá por dentro, como se a pessoa que levamos escondida por baixo da roupa de corrida quisesse sair por nós fora e ir em auxílio dos desvalidos.

O segredo é não vacilar nas convicções nem por um instante. Mesmo quando os meus colegas de corrida imaginários Barbosa e Hugo sugerem que eu possa estar a perder tempo com quem não me agradece e, por vezes, até me ignora quando passa por mim na rua mais tarde, eu respondo que não. Não estou a perder tempo.

Estou a investi-lo para me aperfeiçoar como ser humano.

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Paulo Jorge Dias
Paulo Jorge Dias
Escritor e jornalista, foi autor da Trombeta de Casal da Burra, um dos primeiros sites de humor em Portugal (2000). Trabalhou no Público, JN e SOL. Site oficial: Site Oficial:

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