São 4h20. Daqui a 10 minutos o despertador vai tocar. Vou-me equipar a rigor, dar uma última verificação no material, comer o pequeno-almoço possível após 4 horas de sono e sair.
Antes, olho triste a minha família. Mais uma vez, vou deixá-los, vou sentir a saudade a cada quilómetro, a cada SMS, a cada tentativa de telefonema nos escassos pontos com rede da Serra. Serão muitas horas. Chegarei já noite. Estarão novamente a dormir. Um último beijo.
De repente, sou parte de uma massa humana, conduzida para a caixa de partida como os gladiadores para a arena. Vai haver sofrimento, sangue, mas não estás só. Olho em volta e vejo rostos familiares. Nas bancadas, nas barreiras, há rostos que oscilam entre o sorriso e a lágrima… “boa prova”, “amo-te!”, “força!”.
A Rosinha é incansável a tirar fotos e a incentivar o pessoal. Promete à malta dos 100km que os vai encontrar num abastecimento. “Aos outros, vejo no fim!” E continua a sorrir.
Então, a coisa fica séria. Um passo após outro, parto sem saber se chego ao fim. Essa é uma das premissas da Freita: não sabes quando e onde a prova termina. O Moutinho grita “Vamos, Campeão! Sempre a dar! Hoje vais-te cobrir de Glória!” O Moubarak, amigo do Qatar que conheci durante a prova, acha piada aos gritos e valoriza o facto do Organizador da prova estar a apoiar os últimos. Diz ele que, nas provas onde costuma ir, as organizações só se interessam pelos primeiros. Não, não, amigo árabe.
A Freita torna-nos todos iguais.
Gosto quando chego a Tebilhão. Ficaram 20km para trás, fiz um amigo muçulmano e encontro o Morais, presença sempre animadora. E, finalmente, consigo falar com a Teresa por telefone. Está tudo a correr bem, o tempo está a ajudar e não me dói nada. Aliás, no final, foi a Freita que me doeu menos.
Sei que dali à Besta (que subi com surpreendente desenvoltura) posso ir quase sempre a correr, mas o Otávio trava-me a intenção. Vamos com calma para ter energias para a temida subida. Inicia-se aqui uma parceria que iria durar até aos últimos quilómetros.
O Otávio puxa por mim nas subidas eu vou-lhe apresentando a Freita. E, mesmo quando ele duvida do que lhe digo, aparece a Carmen no seu habitual PAC 3 a confirmar a minha aptidão para guia turístico. Mesmo assim, o Otávio não pára de perguntar “falta muito para as sscadas?”. Rais parta o açoriano, ansioso por chegar ao sítio onde faleci em 2016 e onde, desta vez, debaixo de uma chuva intensa, ele galgou por lá fora e eu fiz aquilo de passo certinho.
Gosto da Lomba. Aquecemos o estômago. A Lomba, que costuma ser animado local de concentração de apoiantes, enfermeiros, staff, atletas que descansam, desistentes e moscas, desta vez é um local frio. A chuva impede grandes pic-nics. A malta abriga-se como pode e como não pode. Até as moscas. Está a ficar frio e o Otávio, que mais parece um puto na véspera de Natal, à espera de um brinquedo novo, agora quer ver o Trilho de Bradar aos Céus.
E foi mesmo. Agora, entre mim e o último PAC está apenas a Frecha da Mizarela… onde tive medo, muito medo. Mas o que se passa? Enquanto o Otávio se diverte na tecnicidade extrema do trilho, eu fico gelado de medo. Chego a parar, agarrado às rochas. O açoriano quer tirar fotografias. Eu quero sair dali.
Está na hora de preparar a iluminação artificial e enfrentar a derradeira descida, o golpe de misericórdia que José Moutinho deu nas minhas forças físicas e psicológicas.
A vertiginosa descida leva de mim o que resta de lucidez, equilíbrio, discernimento. Não dá. Sai do monte, entra no monte. Falta muito para Arouca?
Empenhado em chegar antes das 17h de prova, o Otávio lança-se ao alcatrão. Eu já não podia mais. Praticamente desde o PAC 5 que eu já não podia mais. Não me doía nada, mas uma assadura toldava-me os movimentos e o raciocínio.
Entrei no Pavilhão saudado pelo Joca, que gracejou com o meu tempo “ele só partiu daqui ao meio-dia”. Após cortar a meta, o meu pensamento voa imediatamente para casa. Só quero sair dali. Como disse ao staff do PAC 5, só quero chegar a casa e ver a minha mulher e o meu filho. Que se lixe o resto.
Só quero ir para casa e nunca mais cá pôr os pés, foi a minha última Freita. Não posso continuar a fazer uma prova que, ano após ano, torna-se mais dura.
Eu sei que é mentira. Em breve, a Flor vai começar a encher o Facebook com o anúncio da Freita 2019 e lá vou eu inscrever-me outra vez. Vamos todos.
A Freita é a minha peregrinação, a minha transformação. Há quem vá a Fátima, a Santiago; há quem faça terapia, jejum e abstinência. Eu passo um dia na Serra.
É incrível o efeito que ela tem em nós. Todos, do primeiro ao último, levamos uma coça de todo o tamanho, mas acabamos sempre por voltar. Sabemos que vai doer, sabemos que vai doer ainda mais que a edição anterior, sabemos que haverá algo mais que nos rebenta com o corpo e com a mente, mas voltamos para sair transformados.
Não somos masoquistas, somos apaixonados. A Freita é Amor e todos sabemos que o Amor também dói.
P.S. – Uma palavra final para a minha equipa. Obrigado pelo vosso apoio no final da prova, fiquei verdadeiramente emocionado.
Nunca pensei ser eu a fechar a equipa. Vocês sabem que ando sempre lá atrás a fugir do último. Lamento não ter feito melhor, mas dei tudo o que tinha e acho que muito do que não tinha também.
Quando no PAC 3 me disseram que a Liliana tinha desistido, disse para mim próprio: “Por ela, vou ter que acabar!”
Parabéns a todos e obrigado por me deixarem ser um “Merino”.
Foto: Miro Cerqueira
Excelente texto, que me fez reportar à minha meia Freita de 2009. Parabéns, pela prova e pelo texto.