Conhecemo-nos num local onde o tempo nos sobra. São sempre infinitos os minutos ou mesmo as horas nos aeroportos. Íamos fazer escala na ilha de S. Miguel, eu para rumar ao Porto e ela à sua ilha do Faial, onde nasceu há 62 anos. Adivinhavamos uma viaja atribulada, tal era a chuva e o vento. E assim foi, com direito a regresso à ilha de Santa Maria onde na véspera a prova tinha sido cancelada por razões que nunca mais esqueceremos. Não houve nem haveria lamentos pelo cancelamento da prova, apenas pela perda de um colega de corrida.
É difícil manter-me calado, meti conversa entre o meu café e a sua meia de leite. O seu ligeiro sotaque brasileiro quase me ía enganando, mas ela era mesmo natural de uma das minhas ilhas preferidas dos Açores. Ao contrário daquilo que normalmente os corredores falam, não foi de corrida que falamos. Falamos das suas origens, do tribunal onde trabalhou antes da sua aposentação, dos 11 anos que viveu no Brasil, do marido e dos filhos que vivem no continente.
Jogou basquetebol entre os 14 e os 18 anos e a partir daí nunca mais praticou desporto. Em 2014, foi ao vulcão dos capelinhos ver os atletas a cortar a meta do Azores Trail Run e achou que um ano depois poderia conseguir fazer o mesmo na prova de 22 km.
Nem os seus 58 anos nem um cancro de mama a fez olhar para trás.
No ano seguinte cumpriu esse objectivo, mesmo sabendo que após a prova seria operada. Superou a prova e a doença. Treina várias vezes por semana e nem a quimioterapia oral que ainda faz a impedem de treinar e de competir. E já não se dá por satisfeita com 22 km, já dobrou a distância e a dureza das provas em que se inscreve.
Não tem problema em falar da sua doença e diz com satisfação que a corrida a ajudou a manter-se ocupada e a faz esquecer a aliviar o stress que a doença lhe provoca. Quando lhe perguntei o que mais lhe agrada na corrida, responde que é o facto de poder testar o corpo e a mente e de se desafiar a si própria, sentindo assim que não existem impossíveis.
Perante histórias de vida como a da Ana Paula, acham que faz sentido nos queixarmos constantemente do entorse, da tendinite ou de maleitas que não são mais que pequenos percalço na nossa vida de corredores?
Obrigado Ana Paula pelo seu testemunho e incentivo. Vamos com certeza ainda durante muitos anos ver-nos por esses trilhos.
Foto: Luis Campos