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Revolução

De súbito a náusea, a vertigem. Depois, o nada! Sentiu como que um remoinho que se formava no estômago, lhe arrepanhava fígado e pulmões. De seguida os rins, as tripas, o coração. Aquele estalido agudo e penetrante permanecia cravado na têmpora esquerda, o cheiro a pólvora impregnava-lhe as narinas e o olhar vazio parecia fixo num ponto distante, indefinido, imperceptível. E enquanto o ventre implodia, viu, tal como dizem, a sua vida num ápice, ao correr da mente.

Tinha preparado tudo ao pormenor. Vivera e revivera aquele momento, antevira-lhe o simbolismo, a carga emocional, num misto de coragem e exaltação. Todos os olhos se cravariam nele e então seria, mesmo que por um instante apenas, o centro das atenções, o senhor do mundo. Afinal, tudo desembocava agora naquela triste e lamentável figura que fazia dele o mais fraco entre os mais fracos, um ser completamente inqualificável, inútil, desprezível.

A decisão tinha sido tomada num segundo, há meses atrás. Como todos os dias, chegara do escritório às sete em ponto. Beijara desprendidamente a mulher sem sequer ter reparado no seu novo penteado. Passara os olhos pela correspondência e sentara-se à mesa à espera de ser servido. Os filhos aproximaram-se sem o olharem. Jantou depressa, quase sem falar, preso vá-se lá saber a que pensamentos. E enquanto ela ficou a tratar da loiça e os filhos subiram ao quarto, levantou-se e deixou-se cair pesadamente no sofá em frente à televisão. De canal em canal, à espera das nove, deu com um filme que lhe prendeu a atenção. Era passado na Inglaterra e dava para perceber que a vida não estava nada fácil para aquela gente. O desemprego afectava uma larga camada da população e, para ganhar uns trocos, meia-dúzia de “maduros” tinham decidido fazer um “show” musical em que, peça a peça, a roupinha ia desaparecendo de cima do corpo até ficarem tal como vieram ao mundo, naquilo a que convencionaram chamar “The Full Monty”.

Identificou-se imediatamente com uma das personagens. Baixo, atarracado, ventre proeminente, nada o estilo “glamouroso” de quem, meneando o corpo, se dispõe a mostrar atributos físicos dignos de nota. A personagem bem se esforçava por melhorar a linha, subia colinas ou atravessava prados a correr, quase até cair para o lado, ou espartilhava-se em largas bandas de filme plástico, na vã tentativa de perder uns quilos de peso. Mas era incapaz de ceder à tentação de uma simples barrita de chocolate. Ou duas, ou três…

Quando desligou a televisão para se ir deitar, não resistiu a mirar-se ao espelho. E não gostou mesmo nada do que viu. Ainda olhou para a balança, mas evitou-a. Ao entrar na cama notou que a mulher, pressentindo-o, se virara para o outro lado. E ali ficou acordado, durante uma infinidade de tempo, barriga para o ar, as pernas cruzadas, sentindo que só poderia censurar-se a si próprio e que era chegada a hora de pôr um ponto final nesta vida. Se outros o fizeram, ele fá-lo-ia também.

Os dias transcorreram uns atrás dos outros. A “cisma” passou a ser maior que uma “doença”. Cada vez mais reservado, chegava agora do trabalho cerca de duas horas após o habitual, sem disso dar qualquer explicação à mulher. Jantava à pressa e sentava-se no sofá a ler. Eram livros e revistas “da especialidade”, como ele dizia, os quais se recusava a partilhar. Mas pouco tempo se demorava por ali. Quando a mulher subia ao quarto, já ele dormia profundamente, como que invadido por um cansaço profundo, do qual necessitasse absolutamente de recuperar.

A atitude desprendida dos filhos contrastava agora com a da mulher. Preocupava-a a postura do marido, sentia-lhe uma ansiedade crescente. Via-o muito mais magro, notava que alterara o próprio regime alimentar, que já não lhe pedia de vez em quando um assado de que tanto gostava. E sentia o coração estremecer quando o via sair de manhã para o trabalho, aprumado como sempre, mas agora com um saco de lona a par da mala de executivo de fechos cromados que lhe dera pelo Natal de há dois anos. Um dia, quase a medo, perguntara-lhe para que era o saco. Respondera-lhe, meio a sério, meio a brincar, que levava ali “as suas pistolas”.

O dia era chegado. Escolhera uma data especial, simbólica, marcante. Uma data que gritasse alto e bom som a palavra “REVOLUÇÃO”. O 5 de Outubro era perfeito. A mulher estaria de turno na fábrica e ele “despacharia” os filhos para os sogros e estaria sozinho para pôr o plano em prática. A noite, tinha-a passado em claro. Via e revia ao pormenor todos os passos a dar, fazia e refazia a lista dos materiais necessários à prossecução dos seus objectivos, de trás para a frente. Rememorava tudo o que lera e refazia os passos, um a um, até ao momento decisivo, derradeiro, sem retorno.

A manhã encontrou-o mal humorado, carregado de incertezas, vazio por dentro, vacilante, derrotado. Era inútil pensar mais no assunto, a decisão estava tomada. Agora era seguir em frente, levar avante a derradeira parte do plano. Cambaleante, dirigiu-se à casa de banho. Enquanto sentia a água quente bater-lhe com força na nuca, lembrou-se que este era o erro número um. Quanto mais tenso, mais determinado. Para quê relaxar, amolecer o corpo, esmorecer a vontade? Depois, enquanto desfazia a barba, deu-se conta do erro número dois. Ninguém faz a barba nestas ocasiões. Era um ritual todas as manhãs, mas esta era uma manhã diferente, bem diferente por sinal. Preparou o saco de lona com o mínimo indispensável, as suas pistolas ao de cima. Rabiscou à pressa um bilhete para a mulher, deixou-o displicentemente em cima da mesa da sala e saiu.

A mulher chegou mais cedo que o costume. Pensou que o encontraria ainda a dormir. O quarto vazio, a cama desfeita, havia ali algo que não batia certo. Com o coração descompassado desceu as escadas e viu o bilhete, meio dobrado, em cima da mesa. Leu-o apressadamente e saiu de casa a correr. Meteu-se de novo no carro e arrancou a toda a velocidade. Sabia bem onde ele estava e precisava urgentemente de chegar a tempo. As suas suspeitas iam-se transformando em certezas à medida que o tempo se escoava irremediavelmente. A noite passada na fábrica tinha-lhe esgotado o ânimo e era às últimas reservas, ao mais fundo de si, que recorria agora neste verdadeiro contra-relógio.

Deu com uma primeira barreira policial, explicou a situação e conseguiu que a deixassem passar. Prosseguiu, entrou em contramão e deixou o carro estacionado no meio da estrada. Corria, corria agora com quantas forças tinha, por entre dezenas de vultos que a fitavam atónitos, as grossas lágrimas a gelarem-lhe a face. Sabia que estava próximo, muito próximo, mas sentia-se impotente para continuar a avançar. E, de súbito, o tiro… Aquele estampido atroando os ares, levantando revoadas de pombos e pondo tudo à sua volta a mexer.

Sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Os segundos passavam agora cada vez mais lentamente. Viu a mente a esvaziar-se. Deixou de ouvir aquela turba ululante de gente que por ela passava e a invectivava a que saísse dali para fora. Tanta gente ali à volta, gritos, insultos, encontrões, e ela, inerte, indefesa, o retrato da solidão no maior abandono de todos os mundos. Subitamente, sentiu os joelhos dobrarem-se. Sentou-se maquinalmente na berma do passeio, depositou a cabeça entre as mãos e chorou. Chorou convulsivamente, sufocadamente, pensando nele como se tivesse acabado de perder a única coisa que realmente valia a pena neste mundo.

As últimas pessoas iam passando já sem olharem para ela. A rua começava a ficar deserta e só um ou outro vulto ainda se mantinha por ali. E de repente, viu-o. Não muito longe, do outro lado da estrada, ali estava ele, igualmente sentado no passeio, inconfundível, com as suas “pistolas” nos pés, uns New Balance vermelhos, novinhos em folha. À medida que se aproximava, sentiu invadi-la um misto de ternura e admiração tão grande, que pareceu que o peito lhe ia rebentar. Ele ergueu os olhos e viu-a também. Não estariam a mais de vinte metros um do outro. Levantou-se e abriu os braços, como que a perguntar-lhe: “Que fazes aqui?” Ela adivinhou-lhe a pergunta e devolveu-a, em voz bem alta: “Não podes desistir agora. Vai-te embora. Não percas tempo. Estarei aqui a ver-te chegar!”

Olhou em frente, hesitou. Voltou os olhos para a mulher, acenou-lhe e partiu, as pernas avançando como que mecanicamente, ainda a recompor-se daquele episódio que quase traiu os seus intentos. Ao longe, avistava-se ainda a cauda da longa fila. E esta Meia-Maratona Cidade de Ovar seria, para ele, uma verdadeira prova de fogo, a primeira de muitas, qual delas a mais marcante.

JOAQUIM MARGARIDO

 

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15 COMENTÁRIOS

  1. Extraordinário. As minhas desculpas, mas é a única palavra que me veio a mente depois de ler este excelente texto.

  2. Margarido, o Grande Mestre do Suspense, com a sua escrita que nos prende do princípio ao fim, nos encanta pela qualidade e nos surpreende pelo desfecho. Que bom tê-lo como amigo!
    Mais um grande momento para a maravilhosa “selecta” dos melhores textos sobre Corrida.

  3. Genial! É o mínimo para adjectivar o grandiloquente texto do Joaquim Margarido. Cheguei a “antever” um final dramático, fatal desfecho, mesmo tendo ainda bem presente o seu magistral trabalho neste sítio com a “Peregrinação” como pano de fundo. Aliviado, admirado e contente me senti ao “descobrir” que a “Revolução” “ocorre” em 05 de Outubro na Meia Maratona Cidade de Ovar, na qual já participei muitas vezes, incluindo este ano.
    É crível que a veia de escritor do Joaquim Margarido supere a de atleta; mas a primeira é notável.
    Sinceros parabéns!

  4. Na verdade este mundo da corrida está repleto de acontecimentos marcantes.
    No entanto estes acontecimentos só são possíveis porque existem muitíssimas pessoas que detêm qualidades inatas de um valor incalculável.
    Este texto envolve o nosso pensamento, torna o nosso mundo mais completo e humano.

    A ti Joaquim Margarido cabe-me agradecer-te por fazeres parte do mesmo espaço que eu, isto é, do mundo da corrida, e as tuas qualidades inatas acrescentam um valor incalculável mas essencialmente um valor humano.

    Os meus parabéns.

    Paulo Antunes

  5. Amigo Margarido, ainda sinto um “arrepio” depois de ter lido esta sublime “página”. Na verdade a nossa Meia de Ovar representa um marco histórico em qualquer pessoa que nela tivesse estado presente. Parabéns!!!! e um grande abraço.
    Fernando Santos

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