Um dos meus truques para espantar as aflições do correr é citar coisas que vou lendo e guardando para as emergências. Alimento-me de palavras que deixam marca aqui dentro. É o meu doping.
Uma delas é o fragmento de um escrito religioso – salmo 23 – que diz “e ainda que eu caminhe pelo Vale das Trevas, nada irei temer porque tu estás comigo”. Socorro-me dele mais vezes do que devia, mas não foi o caso na última prova que entrei, porque o Vale não era das Trevas mas sim de Cambra, verdinho, salpicado do colorido de fábricas pujantes e povoado de gente bonita, alegre e acolhedora.
Graças ao RunCambra 2022 visitei a cidade pela primeira vez em 47 anos de vida e, logo à chegada, percebi o quanto fora desnecessária a pergunta da véspera. Aproveitando um convívio familiar, no glorioso João da Reta – onde a minha irmã Manela faz as melhores tripas de Entre Douro e Minho -, perguntei à minha sobrinha, que trabalhou uns anos na Colep, se aquela zona tinha muitos altos e baixos.
Burrinho eu, mas com atenuantes, que por essa altura já estava devidamente abastecido da minha bebida energética favorita, o Foral de Felgueiras branco. Ora, se é um vale é óbvio que está cheio de subidas e descidas! A não ser o Vale e Azevedo, que é sempre a subir: sobe o saldo da conta bancária, sobem as acusações de burla, sobem os anos de prisão que nunca vão ser cumpridos.
Felizmente, a boa gente de Vale de Cambra sabe fazer as coisas e arranjou ali um compromisso de nos levar a passear pelos lugares mais emblemáticos da cidade, sem nunca nos cansarmos o suficiente para termos de recorrer à batota das frases inspiradoras.
Até porque, voltando ao texto do “meu” Salmo 23, nada precisava de temer porque ele estava comigo. Não Deus, porque me fiz descrente há demasiado tempo, nem o meu Pai, que por nefasta coincidência partiu exatamente 17 anos antes da prova de Vale de Cambra.
Comigo estava ele, o Pinheiro, de quem sou amigo vai para dois anos mas que só nessa manhã conheci pessoalmente (modernices tecnológicas!). Em tão boa companhia só deu tempo de desligar o cronómetro, aproveitar a paisagem e fazer ali umas dezenas de minutos a falar da vida e do resto.
Naqueles 10 quilómetros, o meu colega de corrida foi um exemplo de resistência, pois nem qualquer um aguentava tanto tempo comigo ali ao lado, aos berros para incentivar colegas imaginárias – Vai, Marlene, vai! -, a roubar pinos de sinalização para os usar como megafone, a imitar a Maria Amélia Canossa quase a chegar à meta ou a fazer uso da gritaria para despertar o homem mais rico lá de terra, aquele que tem um casarão sobranceiro ao Parque, ali pela zona do campo da bola.
Porque para alguns de nós correr é muito mais do que uma obsessão com a linha da meta e com os números que mostra o relógio modernaço. É divertir-se, divertir os outros e usar as dores que trazemos por fora para sufocar as que guardamos cá dentro.
Foto: Runcambra