Conheça quem é o verdadeiro frade beneditino que costumamos ver em muitas das corridas por esse país fora. O afável, brincalhão e comunicativo atleta trata-se afinal de um dos melhores ultra-maratonistas de sempre, tendo na década de 80 efectuado provas como a volta a Portugal (por etapas), Paris/Maia (etapas) e Lisboa/Maia (etapa única).
É gratificante falar durante algumas horas com José Moutinho. No entanto, não é nada fácil entrevistá-lo ou pelo menos anotar tudo o que nos conta. Primeiro porque as histórias saem-lhe da boca em catadupa, são tantas e tantos os feitos que é quase impossível reunir numa pequena entrevista, tudo o que haveria para dizer. Um livro com as suas histórias seria dos grossos ou quiça em vários volumes.
Fiquemos pelo menos a saber um pouco quem é este conhecido corredor nas nossas estradas e organizador de provas e trails de montanha.
Nome: José Moutinho
Idade: 50 anos
Profissão: Empresário
Como e quando começou a correr?
Comecei a correr aos 10 anos. Estava eu no que agora corresponde ao 5º. Ano de escolaridade. Havia na escola actividades desportivas e o atletismo seduziu-me logo. Na Maia não havia nenhum clube e então eu fui para o Porto. Nessa altura o desporto escolar não era organizado. Éramos capazes de fazer 3 ou 4 provas por ano, isto antes do 25 de Abril. Não havia quase clubes de atletismo. Eu corrida pelas ruas da Maia sozinho. O gosto ficou e surgiu então o 25 de Abril. Aí houve a explosão, com o aparecimento de diversas provas populares, de clubes organizados e a dinamização de provas de estrada. Nessa altura regressei à Maia e ingressei no Clube de Atletismo de Santana, onde me mantive até aos vinte e poucos anos. Posteriormente viria a fundar a secção de Atletismo do Futebol Clube da Maia. Aos vinte e dois anos deixei o chamado atletismo tradicional e, numa altura em que pouco se falava em maratonas, eu decidi avançar logo para as ultra-maratonas. A primeira prova que me deu (e ainda me dá) gozo montar e correr foi uma prova de 1600 Kms num mês. Foi a volta a Portugal.
Porque se veste de Frei Bento da Cruz?
Tenho tantas histórias à volta deste assunto… são todas fantásticas. Isto começou com o meu malogrado amigo Sálvio Nora. Eu criei esta figura para participar apenas numa prova. Eu corria já provas de montanha e a última prova era a chamada Prova do Monge, em Sintra. Era uma prova que já não contava para o ranking e como era a prova do frade, resolvi vestir-me de frade para a brincadeira. Correr na montanha com aquelas vestes era uma dificuldade acrescida, mas isso não demoveu a minha ideia. Disse à malta conhecida que tinha um novo equipamento da Nike para estrear nessa prova. Chegada a hora, custou-me vestir o secreto equipamento. Pensei que iam achar uma palhaçada, mas como o resultado da prova já não me interessava, decidi avançar mesmo. O final da prova coincidiu com o local onde estava a haver um casamento do Jet 7 e eu entrei no mesmo abençoando toda aquela gente. Toda a gente achou piada e eu pensei que a coisa ficaria por aí, aliás era mesmo essa a intenção.
Passados uns tempos, houve as 3 milhas do Nabão em Tomar, por alturas do Carnaval e o Sálvio Nora insistiu para que eu me equipasse novamente de beneditino. Eu lá fui e comecei aí a encarar o personagem, a dar-lhe postura, dar-lhe vida e a criar interactividade com os restantes atletas e o público. Criei aquilo a que eu chamo uma personalidade multimédia.
Tenho muitas histórias à volta deste beneditino por mim criado. Muitos são os ministros e presidentes que já levaram a bênção do Frei Bento da Cruz, inclusivamente o actual primeiro-ministro.
Uma vez em Alenquer, desviaram-me de uma prova para ir fazer um baptizado. E lá fui eu deitar água na cabeça do menino.
Quando nas provas me dizem: “então você vai tão cá atrás?” eu responde sempre “um bom pastor para tomar bem conta do seu rebanho, deve de ir cá atrás para o poder ver todo…”
Há algum método ou segredo para correr provas tão longas e desgastantes?
Eu era adepto de um método que era o LSD (Long Slow Distance) que consiste em correr longas distâncias sempre ao mesmo ritmo. Depois fiz umas adaptações muito significativas para estes estilos de corridas e que era utilizado pelo francês Baberrac que fez a travessia dos EUA. Consistia em parar de 4 em 4 km. O tempo de paragem é o atleta que o determina, tanto pode ser 5 segundos como 5 minutos. Isso parece não fazer sentido. Se nos estamos a propor fazer mais de 1000 Kms, parar logo ao fim de 4 Km, que não estamos cansados, não parece muito lógico, mas é assim que se deve de fazer segundo este método. Utilizei este último método na volta a Portugal e adaptei essa técnica para o Paris/Maia. É um método essencialmente psicológico mas que fisicamente trás muitos benefícios.
Apesar de ser adepto do trail, foi aí na estrada que cometeu aquilo que muitos consideram verdadeiras loucuras. Conte-nos algumas delas.
Daria para falar muito acerca de cada uma delas. Julgo que cada uma daria um livro. Quero salientar que correr estas provas era apenas um dos pormenores de todo o evento. As provas não existiam, eu é que tinha que as criar, estudando ritmos, nutrição, etapas, tudo isto numa altura em que não havia a informação disponível que temos nos dias de hoje. As provas eram organizadas para mim e para o meu irmão. Éramos os únicos que as corríamos.
Volta a Portugal – 2.Out.1982 (perto de 1700 Kms)
Ninguém acreditava em nós. A primeira etapa foi Maia/Albergaria. Chovia torrencialmente. Fizemos várias etapas percorrendo o país todo, fomos até ao Algarve, subimos pelo Alentejo, Trás-os-Montes, Minho (Monção) e descemos até à Maia.
Sempre comecei todos os projectos sem nenhum trunfo. Na nossa comitiva levávamos nutricionista, massagista, etc. Éramos 2 a correr e 6 pessoas a apoiar-nos. Comecei a estudar os trajectos e verifiquei que todas as etapas terminavam em localidades que tinham corporações de bombeiros. Esse foi o segredo. Num dos treinos, eu e o meu irmão fizemos Maia/Albergaria-a-Velha e portanto eles aquando da primeira etapa já estavam à nossa espera. Todas as corporações nos receberam de uma maneira fantástica, mas tenho que agradecer muito especialmente aos Bombeiros de Albergaria-a-Velha.
Isto porque tiveram uma iniciativa que se viria a manter por todas as etapas. Para além de nos receberem de forma principesca, acompanharam-nos até ao limite da sua área de acção e comunicaram à corporação seguinte que o iriam fazer. A corporação seguinte veio receber-nos e acompanhou-nos até ao seu quartel onde nos esperavam sempre grandes “banquetes”. No dia seguinte, “entregavam-nos” à corporação seguinte e assim sucessivamente do princípio ao fim. As corporações chegavam a competir entre elas querendo cada uma receber-nos melhor, chegando ao ponto de se desentenderem e quase a chegar a vias de facto, não fosse a nossa intervenção. Na altura já tínhamos “ipods”. Levávamos numa das carrinhas aquelas cornetas com música em cassetes que rolavam o dia todo. Um dia na etapa de Beja / Évora o carro da música teve que ir para a frente e nós sem música parece que andávamos perdidos, que não sabíamos correr. A nossa mente é incrível.
Paris / Maia – Outubro 1984
34 dias a correr um total de 1740 Kms. Sessenta e poucos kms por dia. Era como um emprego. Começávamos às 9h00 e acabávamos às 17h00, fazíamos 2 turnos o da manhã e o da tarde.
Lisboa / Maia – Julho de 1986
Os 350 km mais exigentes que tive na minha carreira desportiva
Quando começou a organizar provas?
Comecei a organizar as referidas provas nos anos 80, só para mim e para o meu irmão. Para outros, organizei uma grande prova em 1991 aqui na Maia. Uma prova para recorde do mundo. Foi o 24 horas a correr em pista. O recorde pertencia á Universidade de Barcelona. Consistia em ter o maior nº. de atletas a correr 1 Km durante 24 horas. Foi na pista do estádio da Maia. A pista era nova, tinha sido apenas utilizada uma vez na sua inauguração. Batemos o recorde com cerca de 440 atletas e portanto 440 Km percorridos. Houve muitos inscritos, uns não chegaram a correr, outros que estavam inscritos não apareceram, mas eu tinha tudo previsto, tinha uma equipa de reserva. Eram os Centuriões. Foi fácil reunir tanta gente. Na zona norte do país, não havia nenhuma pista de tartan e não faltava quem quisesse correr nesta “novinha em folha”. Para a maioria dos atletas seria mesmo a única oportunidade na vida de correr nesta pista. Cada atleta que estivesse a correr ouvia o seu curriculum a ser lido e a sua imagem a aparecer no novíssimo ecran gigante do estádio. Foi giríssimo.
Provas de montanha e trails realmente a sério, comecei a organizar há quatro anos.
Que provas organiza?
Organizo através da Confraria Trotamontes as provas: UTSF – Ultra Trail Serra da Freita, CSTA – Caminhos de Santiago Trail Aventura, UTGR- Ultra Trail Geira Romana, MIUT – Madeira Island Ultra Trail.
Novidades para este ano e seguintes?
Teremos a 1ª edição do Trail Nocturno Lagoa Óbidos (Agosto) e Eco Maratona Vale do Lima (Novembro).
Estou a dar apoio de consultadoria ao Trilho dos Pastores em Fátima e ao AXTrail.(Aldeias de Xisto).
Penso fazer parcerias com clubes e entidades locais de forma a criar núcleos locais que estejam preparados a organizarem as suas próprias provas.
Mas a grande novidade será o Campeonato das Aldeias do Xisto. A prova está a ser planeada para 3 anos. Serão provas de jornada dupla. Em cada fim de semana haverá duas provas. Este ano serão 2 fins de semana e portanto 4 provas. Em 2010 serão 3 fins de semana e em 2011 manter-se-ão os 3 fins de semana e haverá uma grande ultra-maratona que será a primeira prova com mais de 100 Km em território continental, que será a ligação entre as principais Aldeias do Xisto. Tudo isto se realizará na Zona de Penela, Arganil, Figueiró dos Vinhos, entre outras. Este ano, o primeiro fim-de-semana será em meados de Junho e o outro em Outubro.
Que conselhos dás a quem quer passar da estrada para montanha e qual a prova ideal para principiantes?
Não sou da opinião que um atleta 100% de estrada opte logo por uma Freita. Será uma má opção. Se não fizer treinos de adaptação a terrenos, irá ter grandes dificuldades. Pessoas medrosas não terão a progressão que deveriam ter e a prova acaba por ser um sofrimento. Há provas mais acessíveis para quem se queira iniciar. O aconselhável é 15 a 20 Km. Se quer optar realmente por uma ultra, a Geira Romana é a prova ideal. No ano passado esta prova foi dura devido às condições climatéricas que se fizeram sentir nas vésperas da mesma. Em condições ditas normais é uma prova acessível a qualquer estreante.
Quais as suas melhores marcas?
Melhores marcas pedestres (ultramaratonas):
100km – 12h22’51”
150km – 20h10’30”
200km – 29h20’24” (melhor marca Nacional)
250km – 41h36’45” (melhor marca Nacional)
300km – 50h41’50” (melhor marca Nacional)
200 milhas (321,8km) – 54h48′ (melhor marca Nacional)
24 horas – 178km (melhor marca Nacional)
36 horas – 223km (melhor marca Nacional)
48 horas – 285,7km (melhor marca Nacional)
Qual o momento mais gratificante durante a sua carreira?
Na verdade tenho muitos e provavelmente a escreve-los em memórias o editor teria que vender o livro ao “quilo”, mas de todos os momentos o mais gratificante foi em 1994 em pleno Dezembro (dia 23) pelas 19h30 fazendo um treino ouvi uns gemidos e surpresas das surpresas, encontrei um bebé acabado de nascer ainda envolto em placenta e que naquele lugar frio e muito húmido tinha sido abandonado.
Gritei por ajuda e após envolver o bebé num pedaço de pano aguardei pelo serviço de socorro mas a criança estava a definhar e entrar em estado de hipotermia.
Solicitei se haveria alguém que me levasse ao hospital com a criança ao que um habitante bem perto do local se prontificou e a alta velocidade levou-me ao centro de saúde da Maia. Como não havia nenhum médico fiquei junto de um aquecedor com o bebé até a chegada dos bombeiros que o levaram para o Hospital de Santo Antonio .
Após isso voltei ao lugar do “crime” e estando eu em calções continuei o meu treino que tinha previsto.
Este foi o momento de que me orgulho muito pois soube que a criança conseguiu sobreviver, sendo depois adoptada para Beja e que foi baptizada de José Maria em honra da época em que nasceu.
Fim.
Agradecimento: José António Rodrigues
Palavras para quê, Moutinho, sempre igual a ti mesmo, apaixonado, e com grandes, mas mesmo grandes histórias para nos contar.
Eu fui um dos 440 que bateram o teu record na pista da Maia, lembro-me bem desse dia.
Sabes bem, do prazer que dá ser teu amigo, e digo-te isto sem rodeios, é um prazer ter-te como amigo.
Força Moutinho
Um abraço
Jorge Teixeira
Já me tinham falado do Frade que “esconde” um grande atleta e um organizador de eventos, e que tive a rara oportunidade criada pelo Vitor de estar presente nesta apaixonante “conversa”.
Um abraço José Moutinho
José António
Ler o que dizes é ouvir falar o teu coração.
Bem hajas, irmão.
JOAQUIM MARGARIDO
Tive o prazer de conhecer o Montinho, numa grande azafama, ou seja quando estava a organizar os caminhos de Santiago, e tinha-me oferecido como massagista para dar apoio aos caminhos, bem dita a hora que conheci este Homem e Amigo, porque assim fiquem a conhecer todos os elementos da confraria trotamontes, e até hoje sempre que a confraria precizar dos meus prestimos lá estarei na linha da frente.
Um abraço ao Comfrade-Mor
Li de uma ponta à outra. Sabia muito pouco acerca do José Moutinho: que era um ultramaratonista que já tinha feito Paris-Maia e pouco mais.
Gostei muito de ler.
Abraço.
Mais uma vez, parabéns Vitor, por esta interessante e esclarecedora entrevista.
Conheço o “Frade Benedito” desde da minha 1ª prova de estrada na S. Silvestre do Porto em 2002.
Conheci o José Moutinho no 1º Ultra Trail da Serra da Freita em 2006, mas só me atrevi participar na corrida de 16 km. No ano seguinte idem.
No ano de 2008 fiz pela 1ª vez o Ultra Trail do Gerês e o da Serra da Freita.
Tenho de agradecer em 1º lugar ao José Moutinho e depois a toda a sua equipa, membros da Confraria e parcerias, os momentos inesquecíveis que se vive durante o desafio ou a aventura das suas provas. Um forte abraço de gratidão.
Considero a prova do Gerês: Geira Romana de 45,1 km uma boa estreia, nas aventuras do Ultra Trail (Ultra = + de 42 195 m).
Mas na Freita conheço casos de quem vez 2 maratonas de estrada e passa-se logo para esta Ultra. Uma colega nossa que nunca tinha corrido uma maratona, vez uma prova espectacular na Freita e a seguir a maratona do Porto.
Este ano se tudo correr bem e houver saúde espero elevar mais um pouco a fasquia nas minhas aventuras do Ultra. Como todos sabem, sou apaixonado pela montanha mas sempre com alguma moderação porque neste terreno o esforço não perdoa.
José Moutinho, ficamos a espera de mais novidades e dentro das nossas possibilidades tentaremos ajudar, mais que não seja com a nossa presença.
Um forte abraço desportivo,
Carlos Rocha
Grande Moutinho…
As tuas provas acima de tudo são convívios únicos e desafios incríveis.
E tu és o grão mestre de uma confraria única.
Ontem mais uma prova, e notou-se logo que tinha dedo teu…Os trilhos do Pastor…duvido que o pastor andasse por aqueles caminhos!
No início de maio lá nos encontraremos nos Caminhos de Santiago!!!
Pedro Sousa
Grande abraço Moutinho!!
Pela primeira ves li esta formidável e inesquecível cronica que fico consciente que foi baseada em factos reais.Parabens Sr José Moutinho por essa forma de estar na vida.Dis que criou uma personagem Multi-Media com a caracterizaçao do Frei Bento da Cruz.À pessoas que estao predestinadas para algo na viva.Por isso continui.O importante é participar ou apoiar a corrida de uma forma ou de outra.Termino desejando muita sorte e saúde para a sua vida.Já agora o que está á espera para lançar um livro.Um até Sempre.