Um dos pilares da nossa civilização é uma pequena coisa a que chamo de Direito Universal do Não-Gosto. Basicamente, traduz-se na liberdade de cada um de não gostar de tudo aquilo que muito bem entender.
Devia até ter direito a um parágrafo só para ele na Constituição e ser ensinado nas escolas, para promover esse ato de liberdade e de expressão do eu mais íntimo. Quanto mais não seja, em nome da transparência: quantas vezes o que não gostamos diz mais de nós, do que aquilo de que dizemos gostar?
Ou, socorrendo-nos das palavras de um vulto maior:
Deste inconfesso mal querer que traz à tona de minh’alma a mais secreta pureza deste eu, que a toda a hora procuro afogar o mais fundo que posso nesse oceano de vergonha onde navego pela serenidade dos dias.
Foi Fernando Pessoa quem o disse. Pena é não o ter escrito, porque a frase lhe saiu a meio de uma noite de copofonia e, no alvorecer da tarde seguinte, ao despertar, deixou que se lhe varresse da memória, mais preocupado que estava a tentar lembrar-se se foi Álvaro de Campos ou Ricardo Reis o nome que dera ao tasqueiro na hora de anotar o calote.
Foi assim que começou essa tourada dos heterónimos, ficam a saber.
O não gostar está de tal maneira subvalorizado que nem sequer lhe reconhecem o direito a uma palavra só, que defina com clareza e sem zonas cinzentas este sentimento. É certo que temos o “desgostar”, mas a mim soa-me mais a causar desgosto a alguém do que a não gostar. Como até sou dado a inventar palavras, chego-me à frente para a hifenizar, criando um não-gosto em jeito de substantivo.
Ora, todos temos o direito a esse não-gosto e eu, não-gostador me confesso: não gosto de canela, nem de andar de avião, ficam já avisados. Claro que há não-gostos para todos os gostos. Desde o mais elementar não gostar de impostos, até ao neandertálico não gostar de pessoas oriundas de outros países, passando pelo clássico não gostar de sopa, o catálogo é vasto e volumoso, tanto que mal caberiam num calhamaço das saudosas Páginas Amarelas..
Mas há, no meio de todos esses não-gostos, uma classe de não-gostistas que diz muito a quem lê estas linhas: os indivíduos que não gostam de corredores. Quem corre já se deu conta disso e dispenso-me de vos recordar das milhentas bocas foleiras ou insultos que já escutamos, ou de guinadas deliberadas com o carro na nossa direção de que somos alvo por essas estradas fora.
Lá terão as suas razões e eu, que sou um descarado, fui tratar de conhecer algumas. Numa breve sondagem entre as pessoas que, em algum momento, exprimiram o seu ódio mortal por mim enquanto corro, ouvi argumentos como o funcional “atrapalham no trânsito”, ou então essa coisa tão nossa que é não gostar “porque me fazem nervos”. Também ouvi um a dizer que não gosta, porque a mulher dele fala de mim com risinhos, durante o sono, mas não chega a ser uma amostra representativa, é mais um incidente estatístico.
Até aqui nada de surpreendente, o que realmente me fez estoirar de perplexidade foi o perfil desta gente que não gosta de corredores, que é radicalmente diferente do que se imagina. Não são pessoas em baixo de forma, ou de beleza descuidada, nada disso. Os piores não-gostadores que conheci era gente aparentemente saudável, fisicamente bem dotada – apta para correr uma boa meia-maratona -, com milhares investidos na sua estética e outro tanto no guarda-roupa. Não lhes chamaria alfas, mas talvez betos obcecados no conceito de sucesso e na projeção do mesmo.
Depois de muito refletir sobre estes dados – uns 40 segundos mal contados, enquanto tirava dois pêlos brancos da sobrancelha – cheguei à conclusão de que nos encontrávamos ali assim numa zona de transição, a meio caminho entre um não-gostar e a sua prima maléfica: a inveja.
Eu sei que a inveja tem costas largas e é tantas vezes injustamente responsabilizada por pequenas e grandes tragédias, mas neste caso julgo que não se livra das culpas, nem pagando fiança. É que, bem vistas as coisas, haverá algo mais invejável do que esta nossa liberdade de ir a todo o lado estando dependente apenas e só das pernas, do coração e do querer?
Porque o que realmente aborrece estas almas prisioneiras do labirinto por elas desenhado, não é verdadeiramente esta nossa aparente – e ilusória – incapacidade de nos rendermos ao cansaço e ao “dói-me aqui!”. Mas antes o atrevimento de nos fazermos ao caminho sem preocupações, alimentados apenas pelo ar que respiramos e pela sensação de liberdade que projetamos a cada passada.
É uma liberdade subversiva e perigosa mas que é só nossa, de quem corre por gosto. De quem sabe o quanto é valioso poder partir para qualquer lado sem se preocupar em ter o carro a brilhar, a roupa arranjada ou o da cara lavada.
E o descaramento de sairmos quase diretos da cama para a rua e seguirmos sempre, com o vento na cara, o corpo a doer, a alma a suar, sem pensar sequer em parar. Porque neste nosso mundo não há lugar para os “não consigo” e muito menos para os não-gostos. Estamos demasiado ocupados a gostar daquilo que fazemos.