A todo o momento sou assaltado por dúvidas. Aliás, por causa disso duas delas até já cumprem pena em Custóias, por roubo agravado e ofensas à integridade física. Mas há uma dessas dúvidas que continua a escapar às malhas da Justiça e permanentemente se me atravessa ao caminho.
Afinal, o que é que levamos calçado quando andamos a correr? Uns ténis, ou umas sapatilhas? É uma questão que alimenta polémicas, paixões e talvez mesmo guerras, desde o amanhecer da Humanidade.
Tão antiga que eu palpita-me que já se colocava aos primeiros Homo-Sapiens, quando iam a fugir aos derradeiros Homens de Neandertal:
– Ò Barbosa, que nome é que vamos dar a isto que o Extra-Terrestre nos trouxe para pôr nos pés e nos faz andar tão depressa? Ténis, ou sapatilhas?
– Sei lá, Hugo! Cala-te e corre, mas é, que se o gajo te deita a luva a única coisa que vais calçar é sapatinhos de defunto!”.
Num primeiro olhar, a disputa parece fácil de resolver. Ténis é nome de desporto, portanto, é quase lógico que seja esse o nome do calçado preferido da legião de betinhos estorilenses de calções apertados e que contam a pontuação dos jogos ao calhas. Tudo o resto – incluindo as nossas, dos corredores – seria sapatilhas… só que não!
Como sempre, o que parece simples tem esta enervante tendência para se complicar e basta uma espreitadela ao dicionário para encontrar lá bem escarrapachado, entre as várias definições, o seguinte naco de prosa: Sapatilha – sapato de sola muito fina e flexível usado por bailarinos.
Portanto, se mal estávamos, pior ficamos, porque agora vemo-nos ali entalados entre o Roger Federer e o Rudolph Nureyev. E se uma raquetada bem dada do Federer é coisa para nos deixar semana e meia em coma, uma estocada do Nureyev – fazendo fé nas biografias do homem – é brincadeira para nos deixar com o fundo das costas… enfim, adiante.
Ora bem, quando lógica e dicionários não ajudam, diz-me a experiência que os livros de História costumam desempatar muita coisa. Sendo assim, essa titânica disputa entre ténis e sapatilhas há de resolver-se nos escritos de um qualquer José Hermano Saraiva do calçado desportivo. Do que li, não gostei. Mas partilho com vocências o que foi possível desenterrar entre os antepassados das nossas Asics, Nike, Adidas e por aí fora.
As primeiras referências a este tipo de calçado remontam aos confins do século XVIII, altura em que a Inglaterra, na condição de potência industrial – uma espécie de China, da época – fez nascer os sand shoe (sapatos de areia), nome péssimo para o marketing, rapidamente mudado para plimsolls, que eram assim à moda de um sapato levezinho e flexível. Como os pobretanas se desgraçavam a trabalhar de sol a sol, só os ricaços tinham fôlego para elas e, com tempo a mais e dinheiro a pesar nos bolsos, acharam boa ideia trocar as botifarras catitas pelas plimsolls nos seus tempos de lazer (que eram mais que muitos). Era vê-los todos catitas a caminhar, jogar cricket, andar a cavalo nos criados ou – inevitavelmente -, disputar umas partidas de ténis.
A partir daqui ninguém se entende. Uns juram a pés juntos que por serem de sola macia não deixavam marcas profundas no campo de ténis, o que aliado à rapidez no arranque e travagem fez com que as plimsolls fossem mudando de nome até passarem a ser conhecidas por sapatos de ténis. Outros, enfurecem-se com esta explicação, alegando que só meia dúzia de gatos pingados lhes chamava ténis, até porque há sagradas escrituras onde está escarrapachado que eram os homens do mar quem mais se afeiçoava a este calçado milagroso, por aderir à superfície escorregadia dos deques. E quem diz barcos, diz praia (daí o nome sand shoe), havendo ainda uns artistas que metem a tropa ao barulho, lembrando a popularidade entre os militares.
Novamente, fomos muito depressa a lado nenhum, o que quer dizer que voltamos à estaca zero. Nesta altura, sapatilhas e ténis continuam empatados, pelo que lá teremos de recorrer ao argumento geográfico. Durante décadas, fomos levados a acreditar que era tudo apenas mais um episódio da guerra Norte Vs. Sul. Do Mondego para cima, a malta calçava sapatilhas e dali para baixo só se usavam ténis. À boleia do conflito geoestratégico, aproveitou-se para colar uns quantos rótulos: os nortenhos eram os parolos e os do sul betos mimados. Mas duas voltas pelo país bastam para estilhaçar preconceitos: há azeiteiros minhotos e transmontanos que calçam “ténes” e copinhos de leite que se passeiam por Cascais de sapatilhas nos pés.
É certo que andamos às turras, mas não somos os únicos. Os americanos – que até tiveram uma guerra civil por causa disso… ok, talvez não tenha sido só por isso – andam há décadas de candeias às avessas para tentar perceber se o termo correto é sneakers ou tennis shoes (com a agravante de alguns mete-nojo insistirem na expressão trainers).
Lá, como cá, não se entendem, porque uns insistem que sneakers abrange tudo o que seja calçado desportivo, enquanto tennis shoes se limita aos sapatinhos de tenista. Mas a outra metade garante que não senhor, o termo tennis shoes generalizou-se, passou a definir tudo o que coubesse dentro de um pé e tivesse pinta desportiva e, mais do que isso, tornou-se dominante e reduziu os sneakers à insignificância. Seja em português, ou inglês, não há maneira de desatar o nó.
Pessoalmente, opto pela expressão sapatilhas, mas não sou exemplo para ninguém, porque tenho o hábito de usar palavras que caíram em desuso.
Por exemplo, continuo a dizer que fulano de tal é corno, quando na verdade é apenas um praticante do poliamor que ainda não foi notificado pela mulher.
Portanto, meninas e meninos, esta guerra, como todas elas, está para durar e veio para ficar, pelo que enquanto não chegam os capacetes azuis da ONU a solução é cada um dizer o que lhe dá mais jeito. Sugiro, por isso, que na próxima prova se dirijam ao colega do lado em tom altivo e digam: “Olha lá, palhaço, não vês que tens os cordões dos ténis barra sapatilhas desapertados?”.
Ao que ele responderá: “Cordões, não! Atacadores”. Et voilá! Vão passar tanto tempo a discutir a problemática cordões-atacadores, que nunca mais ninguém se lembra do derby sapatilhas-ténis. Problema resolvido: nada melhor do que uma guerra nova para enterrar uma guerra antiga.
Eh lá, tu queres ver que é desta que eles me entregam o Nobel?