As televisões despejam-nos em cima horas e mais horas de debates, comentários e análises, mas nunca as vi dispensarem nem 5 segundos àquele que é, talvez, o tema mais fraturante da atualidade: devemos arrumar as peúgas em bola, ou dobradas em dois?
Não sei como é que isto funciona convosco, mas eu cá morro um bocadinho sempre que vejo alguém agarrar num par de meias e enrolá-lo como se fosse um novelo. É que os elásticos da canela também têm direitos, sabiam? E quanto mais se enrola uma meia, mais se encurta o tempo de vida deles, até que, um dia, vamos para as calçar e sentimo-las morrer pela perna abaixo, até desfalecerem irremediavelmente abraçadas ao tornozelo.
Causa do óbito: colapso do elástico.
É uma tragédia, pois é. Mas já ninguém tem respeito por um bom par de peúgas. Os pró-novelo ainda nos tentam esfregar areia nos olhos, com o jurássico argumento de que as meias, se forem só dobradas em dois – como eu e os pró-dobras tanto apreciamos – perdem-se umas das outras, na imensidão das gavetas.
Olhe que não, olhe que não! Contrapomos nós, que somos liberais nessas coisas e fechamos os olhos à promiscuidade entre peúgas: as grosseiras de andar por casa deslizam para o meio das fininhas de fio da Escócia, as de correr e jogar à bola embrulhadas com as pequeninas da moda, que mal nos chegam aos calcanhares. No fundo, até apreciamos a libertinagem e, aqui entre nós que mais ninguém nos lê, às vezes chegamos mesmo a incentivar essas pequenas orgias de algodão, poliéster e elastano.
Não por devassidão, mas por desporto. É que o chavascal dá sempre lugar à reconciliação e aqui, tenham lá paciência os novelistas, não há pai para nós, os dobristas. Somos assim uma espécie de terapeutas conjugais das peúgas: por mais desavindos que estejam os pares, encontramos sempre maneira de voltar a unir aquilo que ninguém deve separar (Mateus 19:6, com ligeiras adaptações).
E não pensem que é só sentar no sofá e deitar a psicologia toda cá para fora. Não senhor! Há um trabalho forense, de minúcia e detalhe: os furinhos da unha do dedão, que denunciam o pé direito e esquerdo de cada meia; as marcas de desgaste de calcanhar que são uma espécie de impressão digital impossível de duplicar; e os padrões de borboto que deixam sempre poucas dúvidas sobre a compatibilidade entre uma e outra peúga, qual teste de ADN caseiro.
No fundo, é o clássico problema das duas visões do mundo diametralmente opostas. De um lado, os das meias em bola, inseguros e controladores, determinados a impor um regime totalitário que restringe a liberdade das meias. Do outro, os das meias dobradas, apóstolos do “laisser faire laisser passer”, fiados no sentido de dever das peúgas, às quais confiam liberdade mas também responsabilidade.
Quem diria que a gaveta das meias havia de se tornar numa amostra do mundo de hoje.