O meu avô Jerónimo era de Elvas e foi contrabandista. Não de amor e saudade ‒ como reza a cantiga ‒, mas de outros bens mais facilmente transacionáveis como café, carne, café e…
… e outras coisas que não tomei bem atenção, porque quando ele me contava as histórias dele, lá na esplanada do Grémio, eu estava mais interessado na neta do Zé de Juromenha, que vinha de férias, de Lisboa, e trazia com ela esse retemperador hábito de comer gelados sentada nos bancos altos do balcão, revelando logo ali uma generosa porção de coxa.
Mas alto lá que, apesar destas lambuzadas distrações, fui ainda assim capaz de fixar o essencial da arte. As traiçoeiras noites de luar, os esconderijos engenhosos, as aparatosas fugas à Guardia Civil, as técnicas de negociação de subornos, o não comer um figo sem se certificar de que não havia lá dentro uma abelha. Coisas assim.
E tudo porque, lá no fundo, alguma coisa me dizia que um dia, num distante futuro, esse legado dos meus antepassados contrabandistas havia de me ser útil.
Ora, esse futuro distante chega-nos agora sob a forma do improvável ano de 2020. Aquele onde tudo é possível, incluindo ‒ tcharan! ‒ o fecho das fronteiras. E se as fronteiras com Espanha até podiam ficar trancadas mais uns tempos, que a gente passa lindamente sem aquele zumbido dos Manolos e as Maricarmens que aqui vêm à caça do bacalhau e dos saldos do IKEA, já o fecho das fronteiras entre os concelhos, decretada para este fim de semana, não é coisa que a malta consiga digerir assim com facilidade, porque dá um valente abanão naquilo que há de mais básico nas nossas vidas: o chamado “vou ali e venho já”.
Há namorados que não vão poder picar o ponto ‒ “com tanta rapariga bonita lá na terra, quem é que os manda ir arranjar namoro tão longe!?”, argumenta a celibatária Mariana Vieira da Silva. Há famílias obrigadas a comprar no supermercado da esquina, em vez de irem arejar para o hiper barateiro da cidade vizinha ‒ “apoiem o comércio local!”, vocifera o ministro Siza Vieira. E gente impedida de ir almoçar aos pais no domingo, onde os aguardava um assadinho de estalo, para desenjoar dos arrozes de atum e esparguetes da semana ‒ “mandem vir o UberEats!”, sugere o manhoso do João Leão, já de olho no IVA da transação.
Ou simplesmente gente como eu, a quem esta brincadeira vai custar uma pequena fortuna. É que me calhou em sorte viver numa zona de gente abastada, que alegremente paga pelo café a exorbitância de 70 cêntimos. Eu, num misto de protesto e avareza, atravesso diariamente a fronteira bracarense, rumo a Famalicão, pátria da classe operária, disposta a dispensar-nos a preciosa cafeína a troco de uma moeda de 50 cêntimos e mais outra de cinco. Agora multipliquem lá dois cafés vezes quatro dias e ficam com uma ideia do prejuízo que aqui o vosso amigo vai ter.
Claro que eu cá não sou de me render à tirania e, em defesa de tantos outros descamisados ‒ e descafeinados ‒ como eu, começo já aqui a lançar as sementes da sublevação. Este fim de semana assumo a ousada missão de ressuscitar o bom, velho e saudável hábito de passar as fronteiras a salto! Seja pelo meio do monte, a correr à frente de javalis desvairados ou de casais de namorados em fúria por terem sido surpreendidos no ato, entre penedos. Seja escondido na parte de trás da carrinha do padeiro, entre tabuleiros de éclairs e sacas de farinha. Seja pelas águas revoltas de um rio, desafiando a corrente a cavalo de uma lontra.
Seja lá de que forma for, eles não nos vão parar. Somos a resistência! Vós sereis uma multidão de Andrés e eu o vosso Lambaça (é do livro “5 dias, 5 noites”, vão ver ao Google que eu estou a ficar sem carateres).
Então, vamos a isso! Bom fim de semana, boa sorte e já sabem: quem for apanhado a cruzar a fronteira, não me conhece de lado nenhum, nem nunca leu esta crónica, entendido? Caso contrário, lá terei de arranjar maneira de vos explicar detalhadamente o tratamento aplicado pelos contrabandistas alentejanos aos seus chibos.