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Azores Trail Run por dentro e por fora – crónica de um ansiado regresso ao triângulo

capelinhosSentado em busca de concentração sinto a mente vaguear e com ela aparentemente também o corpo. Sinto-o balançar. Sinto-me balançar. Olho as pernas e confirmo a imobilidade.

Desisto. Entrego o comando. Estou na Caldeira a marcar o trilho debaixo de um cerrado nevoeiro. Levanto os olhos e não vejo a bandeirola seguinte. Volto a cabeça em direcção a um ruído de passos e adivinho o Delcio num vulto que a pouco mais de três metros se aproxima, carregando um molho de canas.

Volto a sentir o balanço das pernas e estou agora em alto mar na companhia de inestimáveis companheiros capitaneados pelo comandante Hélder Bacalhau e contramestre Dulce: a melhor, e seguramente a mais acolhedora, dupla de pescadores do Faial. Sinto a maresia enquanto perscruto o horizonte em busca de um bando de cagarros ou de um grupo de delfins, seguros indicadores da presença de pescado. Descanso as pernas sentando-me agora na proa e quase tocando os golfinhos que nos acompanham. Os salpicos passam a chuveiro, mas eu recebo-o como poção mágica destinada a contrariar o sono de uma noite dormida à pressa entre as 2 e as 6 da manhã. Estendo-me cerimoniosamente no convés tentando distender os músculos e aquecer as carnes aos primeiros raios de sol da manhã.

Fecho os olhos e passo o dia anterior à pescaria em revista, recordando a beleza e a dureza dos primeiros quilómetros, percorridos a ritmo controlado, contrastando com a impaciência de atletas mais jovens que atacavam as subidas com se o mundo estivesse a fugir-lhes debaixo dos pés, para logo em seguida se lançarem furiosamente ladeira abaixo.

Lembro-me de alargar a vista até ao horizonte e de ficar inebriado com o verde das ímpares encostas do Faial. O farol da Ribeirinha lá ao longe e o Pico no horizonte, do outro lado do Canal, sempre envolto numa misteriosa e irrequieta bruma que no seu jeito provocador ora destapa um flanco para nos revelar mais uma porção do contorno desta magnífica montanha adormecida, ora cobre um outro fragmento que ainda há pouco estava perfeitamente a descoberto.

Revivo rostos e conversas, com o Vitor e os Migueis como denominador comum, donos de impagáveis humor e boa disposição com que tive o privilégio de uma vez mais partilhar uma aventura do primeiro ao último metro.

Atacamos agora a subida à Caldeira mais parecendo um grupo multicultural de excursionistas que vai rindo e trocando experiências à medida que se vai debatendo com estes longos e íngremes “esses” que nos despejarão na bordadura do vulcão. Mais do que demonstrador de boa disposição, o riso é sinónimo de uma felicidade sem igual.

Revivo a chegada ao abastecimento que antecede a bordadura da Caldeira, onde somos saudados como heróis, como se a prova estivesse já concluída. Gente boa, muito boa, ao longo de toda a prova. Uma organização inexcedível, composta por voluntários de todas as idades. Rostos que jamais esquecerei. Despedimo-nos deste como de todos os pontos de abastecimento, com a habitual exclamação do Miguel: “vamos embora, se não há cerveja não estamos aqui a fazer nada”

Cerveja não faltaria à chegada. Nem cerveja nem uns magníficos carapaus de escabeche, com que eram presenteados todos os atletas assim que cruzavam a linha de meta, após mais uma épica chegada aos Capelinhos, para onde o meu pensamento me transporta de imediato, e onde me vejo a cortar a meta na companhia dos três companheiros com quem partilhei a aventura. Do lado de lá da linha estão os incansáveis Mário Leal e João Melo, os grandes obreiros deste evento de excelência a quem manifesto a minha gratidão por me concederem o privilégio de uma vez mais fazer parte desta tão especial família, recebendo os atletas um a um. Recordo o mergulho nas frias águas do Atlântico poucos minutos após a chegada, mas apenas após ter aviado uns quantos carapaus regados com cerveja.

A noite, terminada no Peter’s, foi destinada a celebrar a façanha desse dia: quarenta e oito quilómetros de permanente celebração do privilégio de estar vivo, ao longo da mais bela prova em qua alguma vez participei. Oito horas para percorrer 800 mil anos desde a parte mais antiga do Faial até à mais recente da Europa.

Foto: José Macedo

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