A melhor Maratona do Mundo

É uma experiência reconfortante, a de cruzar a meta de chegada de uma maratona. Mas mais reconfortante ainda, é cruzar a meta, abraçar um amigo que me espera e que conhece o autêntico caminho de cabras que tenho feito até aqui, com todos os objectivos cumpridos.

Já se torna um pouco redundante falar da perca de peso com a corrida. Todos perdemos. Há atletas ilustres que saíram do sofá para o topo, que trocaram cigarros por sapatilhas ou lua-de-mel nas areias brancas e águas temperadas por longas corridas nas montanhas, entre bolhas, entorses e hipotermias.

Mas estes, já mais de 50 kg, e os pequenos degraus que vou subindo, levam-me ao enorme desejo de apregoar ao mundo, que todos podemos ser aquele caso de sucesso. Quando alguém se mete ao caminho, se dedica e se compromete consigo próprio a fazer o que lhe determinará o êxito, nem sempre terá sucessos, mas quando eles chegarem vão ter um sabor infinitamente superior a todos os obstáculos que teimosamente forem aparecendo.

Já conhecem a minha história, é pública, está aqui relatada. Sou maratonista contra todas as probabilidades. Já fiz 8 maratonas de estrada e 6 ultras de montanha, mas nunca tinha conseguido baixar das 4 horas na maratona. E porquê? Porque nunca (excepto na primeira) preparei a maratona com antecedência e cuidado, obedecendo a um plano de treinos e provas que me levassem a adquirir forma e performance que o proporcionassem. A título de exemplo (a não seguir), há duas semanas fiz 107 km no total dos dias, quilometragem totalizada e pouco aconselhável 8 dias antes de uma maratona.

Mas porquê as 4 horas? Porque a grande maioria dos maratonistas amadores, aqueles que não se ficam por apenas uma experiência, tentam baixar da 1/2 hora que normalmente ultrapassam; os que fazem entre 3h30 e 4h, tentam baixar das 3h30 e os que fazem pouco acima das 3h, tentam baixar desta barreira, e entrar num restrito grupo, dos que fazem menos de 3h. Tudo isto requer trabalho, disciplina, dedicação e planeamento. Nada aparece ao acaso.

Ora eu, pouco adepto dos “planos de treinos”, pouco disciplinado quanto à obrigatoriedade de seguir em dias específicos treinos pré-determinados e mais virado para o Correr Por Prazer, ia já para a sexta maratona de estrada com a expectativa de baixar das 4 horas, mas, nas 5 anteriores, normalmente por 1, 2 ou 5 minutos, não o tinha conseguido. Há um ano em Sevilha fiquei a um minuto, em Outubro no Porto a 2, por este ou aquele motivo falhava. Nada de grave, não era uma obsessão. Decidi pôr de parte esse pensamento em cada corrida que começava, focando-me apenas na capacidade de saber controlar os meus ímpetos quando a prova começa e tudo são forças, e impulsionar as pernas com a cabeça quando os músculos gritassem de cansaço. Foi assim em Lisboa, em Dezembro, onde acabei a Maratona com um atleta que tinha nascido com os pés botos, no meu pior registo, mas a testemunhar um feito heroico e arrepiante, num autêntico desafio à natureza.

Este ano parti para Sevilha sem grande pressão, integrado num grupo de amigos, onde não faltou um repasto no Alentejo, regado com maduro tinto, onde as entradas foram “Pezinhos de coentrada” e o prato principal “Migas com plumas de porco preto”. Nada de massa, peixe grelhado, água ou cola zero. Não é propriamente ementa de atletas, mas porra, na véspera ninguém estraga uma prova, e o convívio e descontração são fundamentais. Claro que tive o cuidado de correr pouco na semana anterior, (fiz 4 treinos de 9 km), hidratar-me bem e descansar melhor. A menos de 24h do tiro de partida, com as emoções à flor da pele, nem o descanso é o ideal, por muito que se deseje, nem a alimentação vai fazer grande diferença (sem exageros, claro). A massa ficou para o jantar.

Fiz uma prova extremamente regular. Sabia que, com tantos km entre provas e treinos, se exagerasse pagaria com mais uma desilusão. A meio da prova, ao chegar aos 21 km, caí na real e retirei toda a pressão da cabeça e desfrutei daquele ambiente único. Não há ninguém que termine uma maratona que não seja digno da minha admiração, acabe com 2h ou com 6h, porque ninguém faz uma maratona sem sofrimento, nem ninguém acaba sem determinação.

Ao chegar à Isla Cartuja onde está o Estádio Olímpico de Sevilha, com tempo mais que suficiente para acabar abaixo das 4h, sorri. E foi a sorrir e a resumir mentalmente todos estes anos, com uma sensação de dever cumprido, que fiz aqueles últimos 4 km. Entrei com tanta descontração no Estádio, olhei para o ecrã gigante, vi a meta e desatei a acelerar como se estivesse num imenso campo florido de felicidade. Depois de a cruzar uns longos braços que me apertam em maior êxtase e satisfação que eu. Era o João Meixedo, que depois de fazer uma notável prova, em 3h37, um mês depois do que penara nos Abutres, me esperava junto à meta, fazendo da minha felicidade e do meu objectivo cumprido, também o seu. As 4h eram, mais que um objectivo pessoal, uma obrigação para com todos os que, como ele, me apoiam e me acompanham desde há alguns anos.

É este o espírito da corrida e dos maratonistas. Habituados a sofrer, sabem o que todos os outros sofrem e vivem os objectivos e feitos alcançados como se fossem também seus. Também eu fiquei assim e agora corro com a força de muita gente.

A desilusão de não alcançar um objectivo esvai-se com a alegria dos objectivos de outros, porque apesar da maratona ser um esforço individual, sem a força, o incentivo, as palavras e abraços de outros, principalmente daqueles amigos com quem partilhámos sucessos e frustrações, que sempre nos apoiam, não tem sentido. Torna-se naquilo que os que não correm pensam sobre todos nós, que parecemos loucos que correm sem destino, quando afinal não passam de momentos em que, sozinhos, apuramos a forma que nos leva a cumprir objectivos que agradam a muitos. E é esta força colectiva, esta vontade que nos empurra estrada fora, km a km, que faz de cada maratona que faço com todos vós a empurrar-me, a melhor maratona do Mundo.

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Rui Pinho
Rui Pinho
Ultra maratonista por paixão, Presidente da ATRP por missão. Relata a viagem que começou há 12 anos, de uma luta que começou nos 137 kg e que espera levar, pelo menos, até às 137 maratonas.

17 COMENTÁRIOS

  1. É verdade quando dizes que as nossas vitórias não são só nossas, são também dos amigos com quem partilhamos os momentos de luta que nos levam a estas vitória especiais. É claro que há momentos que são pessoais – só tu sabes o que sentiste – mas também há o contrário; acompanhei-te desde que entraste no estádio e vi o que mais ninguém viu: a expressão que se desenhou no tem rosto no momento em que, sobre a linha de meta, levantaste os olhos e confirmaste o tempo no cronógrafo oficial. Desculpa lá, mas esse momento é só meu 🙂

  2. Que fantástico é ter o privilégio de acompanhar “in loco” estes estrondosos êxitos, como foi agora o caso de Sevilha. O Rui é, sem dúvida, um dos meus heróis (tenho poucos) e um exemplo extraordinário para todos nós. Parabéns por este teu relato, lido com toda a atenção, e que me transmitiu imensa energia para continuar a desfrutar destes caminhos de sucesso colectivo. Um grande abraço, e obrigado!

  3. Também lá estive, a sofrer e a disfrutar os 42,195 Km que no fim são um pouco mais dificeis, porque os últimos devem/parecem ter mais de 100 metros. estou de acordo com o objectivo da baixar a meia hora anterior, pois já comecei a pensar na de 2014. Os meus parbéns, pela crónica e pelo resultado.

  4. Meixedo: Realmente, aquele momento, é mesmo teu. E mereces porque és um dos destinatários do feito. Maior feito só quando te conseguir acompanhar numa maratona de princípio até ao fim. Abraço!

  5. Luis Pires,
    Grande inspiração és tu. Fazes parte daquele grupo de pessoas que encarna a paz e a presença de espírito ideais para se correr por prazer. Tens uma postura completamente altruística em relação aos outros, sempre disponível para apoiar e incentivar. Não me esqueço da minha primeira maratona e do teu apoio, com o Vitor Dias, junto à meta, com um eloquente “Eu sabia que conseguias”. Pesava 106 kg e acabava de conseguir o impensável, mas que tu acreditavas. Em Sevilha apadrinhaste mais uma excelente estreia, acompanhando a Patrícia de princípio ao fim. És único, exemplar e é com orgulho enorme que leio essas palavras. Também fazes parte dos que me empurram, és dos que valorizam sempre.
    Forte abraço!

  6. Feliciano,
    Obrigado pelas suas palavras e parabéns pela prova. Realmente, a quase todos os atletas deu mais um pouco que os 42,195. Provavelmente será pelos desvios que vamos acumulando, seja nos abastecimentos, seja na busca de sombras. Lá estaremos em 2014, desfrutando de todo aquele excelente conjunto de mais valias para uma maratona popular, e sofrendo quando as forças faltam nas pernas e têm que sobrar na vontade.
    Boas corridas!

  7. Caro Rui
    Avalio este relato absolutamente fantástico, muito para além das palavras. Transparece o estado de alma de quem vive uma Maratona como a de Sevilha, que também é a minha preferida. E ter ali amigos como o Meixedo a dar aquela pontinha de ânimo que tanta força dá, enleva o espírito e deixa gravadas sensações indescritíveis (os tais momentos que são só dele). Obrigado pela partilha, Rui.

  8. Caríssimo Fernando,
    Obrigado pelas simpáticas palavras. Aquela maratona é realmente uma organização dedicada ao atleta de pelotão. A simpatia e a força que transmitem, staff e população, fazem com que os sentimentos vividos se intensifiquem e que os atletas se superem. Aquele abraço!

  9. Caro Rui
    Sou testemunha do abraço que levaste do Meixedo.Estava eu “debruçado”,depois de cruzar a linha de meta,quando te vi passar e vejo o Meixedo a dirigir-se a ti com a alegria de quem é amigo,só não consegui chegar-me a vós para partilhar desse momento e dar-te um merecido abraço,pois estava a tentar recompor-me de uma valente “coça”!
    Parabéns,és um grande exemplo para mim!!!
    Forte abraço
    Paulo Rodrigues

  10. 🙁 nem imaginas como fiquei agora desapontado, Paulo … a verdade é que não te vi 🙁 Já em Portugal, ao ver as classificações, percebi que deverias estar por ali … fico mesmo sem saber o que te dizer … a verdade é que eu desde que cortei a meta que fiquei apontado para a porta do estádio à espera de uma camisola PortoRunner (do Rui).
    Fica para o próximo ano, Paulo; dessa vez esperas tu por mim 🙂

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