A minha rua é estreita e fria. Na verdade, nem se trata bem duma rua. É mais uma viela com nome de rua. Ou de travessa: Travessa Major Passos. A minha mãe diz que o Major Passos era um homem muito mau, que esteve na guerra em França, pertencia à Maçonaria ou coisa assim, odiava crianças e que, quando morreu, quis que lhe cortassem as veias do pescoço.
Não tem mais de cem metros, a minha rua. De um lado e do outro os muros são altos, escuros, com as pedras a ver-se, sem cor, quase sem vida, a não ser um ou outro feto mirrado que cresce entre duas saliências mais fundas. Na minha rua não passam carros e só tem a minha casa. A minha casa e duas garagens. Uma das garagens é da minha casa, tem um portão em chapa verde-escuro, com a tinta a estalar e a minha mãe está sempre a ralhar comigo porque eu gosto de jogar à bola contra o portão da minha garagem. A outra garagem é do meu amigo, o Alberto Tavares.
Eu gosto muito do Tavares. Ele é corredor e tem muitos amigos que também são corredores. Ele não é muito velho mas tem uma barba muito branca que o faz parecer velho. Trabalha na fábrica do senhor Ramiro e mora perto da Estação, mas quando sai do trabalho vem sempre para a garagem. Às seis e dez em ponto chega à esquina da minha rua e eu já estou à espera dele. Fazemos um jogo de baliza-a-baliza – só cinco minutos, Quinzito! – e depois entra na garagem. Ele primeiro e depois eu…
É mágica a garagem do Tavares. Logo à entrada tem um armário que está cheio de sapatilhas de todas as cores. São para aí trinta e algumas já estão velhas e gastas e sujas. Há umas cor-de-laranja que têm desenhado um galo mas as que eu mais gosto são umas azuis e amarelas que têm desenhado um tigre a atirar-se. O meu amigo Tavares deixa-me mexer nelas e as do tigre têm uns picos por baixo. Ele diz que são para correr na lama e não escorregar.
Depois tem um quadro na parede que está sempre cheio de papéis de todas as cores com letras grandes e desenhos muito bonitos. O Tavares diz que são os cartazes das corridas e também que há uma muito importante em Ovar e outra em Lisboa, e uma muito bonita em Peniche ou coisa assim, e outra com muita gente no Porto, mas não gosta dessa porque é só para as mulheres!
Mas do que eu mais gosto na garagem do Tavares são as taças que estão sobre a banca. Fico a olhar para elas, a ver-me nelas ao espelho com a cara ora muito afiada ora muito gorda. Há uma que é quase do meu tamanho e está no canto. O Tavares diz que foi há muito tempo que a ganhou e que hoje já não há taças assim. E até há uma que tem um homem nu a correr. Ao lado das taças o Tavares tem muitas medalhas e livros e uma caixa com fotografias. Ele está sempre bem disposto e deixa-me pôr as medalhas ao pescoço mas quase nunca tem tempo para me mostrar as fotografias, porque às seis e meia chegam os outros corredores e lá vão todos.
Às vezes o Tavares fala-me do Carlos Lopes e do Fernando Mamede e dum amigo que é o José Regalo e que andaram na tropa e fizeram uma corrida juntos em Viseu. E também fala na Manuela Machado e na Rosa Mota e diz que elas eram muito magrinhas e eram umas lutadoras e ganharam corridas muito importantes. E também dum soldado que foi a correr muito tempo duma cidade até à outra, na Grécia, e que morreu depois de falar com o Rei. E também doutro que se chamava Francisco Lázaro e que também morreu numa corrida para aí há cem anos porque estava muito calor e correu sem chapéu.
Agora começam a chegar os corredores amigos do Tavares. Tem um que já é velho e baixinho e gordo e que está sempre a falar em séries de oitocentos metros. E também tem uma rapariga que ainda é nova mas eu não gosto dela porque ela tem os dentes tortos. E tem ainda um que é comunista ou coisa assim, e traz uma espécie de meia no joelho e está sempre a dizer que os corredores todos deviam ter uma casa só para eles e que deviam ter também uma pista, e os outros dizem-lhe que sim e chamam-lhe candidato. Às vezes aparece a mulher do Tavares, que tem a cara muito vermelha e uns óculos grossos e esquisitos e ele fica muito atrapalhado porque ela está sempre zangada e a dizer que está tudo desarrumado. E nós ficamos muito calados e ela começa a varrer e temos que sair por causa do pó.
Já se vão embora. Fico a vê-los desaparecer na curva da rua, ou viela, ou travessa. Mas sei que amanhã, às seis e dez em ponto, chega outra vez o meu amigo Tavares e lá vamos jogar mais um baliza-a-baliza e depois, na garagem dele, talvez me conte mais uma história dessas de corredores que ganham… e sofrem… e lutam… e morrem!
JOAQUIM MARGARIDO
[Texto publicado em 01 de Julho de 2006, no Fórum de “O Mundo da Corrida”]
Fantástico!
Quem escreve assim não é coxo.
Obrigado.
Tinha lido este texto no dia em que foi publicado no Fórum em 2006. Li hoje novamente com o mesmo prazer, penso que todos nós temos lembranças de ruas assim!
Parabéns
Que belo texto. Parabéns!
Eu conheço uma garagem muito parecida com a da história.
A primeira vez que li este artigo, penso que foi no fórum do mundo da corrida e agora voltei a ler como se fosse a primeira vez!
É bom voltar a publicar estes artigos e há muitos em espera. Agora que vem ai a Freita, existem textos do Margarido muito bonitos relacionados com a prova.
Obrigado Vitor!
muito legal parabens