Nicolau Maquiavel escreveu uma obra tão marcante para a nossa civilização que até deu origem a um adjetivo, criado a partir do seu nome: maquiavélico. O autor de “O Príncipe” é citado até à exaustão por políticos, comentadores e toda a gente que quer ser alguém nos corredores do poder.
Mas, porque a História arranja sempre maneira de se vingar das nossas malfeitorias, Maquiavel acaba – tragicamente – por ser mais vezes citado pelas frases emblemáticas que nunca disse. Tais como:
– “Era um bolo de arroz e um abatanado, se faz favor”
– “Ó boa, anda cá que eu mostro-te o Príncipe!!!”
E, a mais famosa de todas elas: “Os fins justificam os meios”.
Lamento ser portador de más notícias [mentira, não lamento nada, até me dá gosto], mas nunca se lhe ouviu ou leu tal coisa. É uma daquelas rasteiras que a internet nos prega e, se o leitor anda a atribuir-lhe tal citação, a culpa é seguramente de alguma versão manhosa de “O Príncipe”, em .PDF, que sacou clandestinamente de um desses antros brasileiros de pirataria.
Quando muito, o pobre do Maquiavel terá dito “os fins justificam as meias”, numa daquelas noites gélidas de Florença, em que nem uma escalfeta nos vale. Ou isso, ou a um domingo de manhã, antes de fazer a sua corridinha semanal pelos passadiços do Rio Arno, para alinhavar ideias sobre o livrito que andava a escrevinhar e que havia de influenciar centenas de candidatos a ditadores, nos séculos que se seguiram.
Ora, nem de propósito, é precisamente na corrida que as meias podem transformar um plebeu num Príncipe. Num tempo em que qualquer pelo púbico influencia decisivamente o nosso desempenho desportivo, escolher essa porção de poliamida e elastano que nos envolve os pés deve obedecer a critérios tão ou mais rigorosos do que a escolha de sapatilhas, relógio ou parceiros de treino.
E nunca como hoje foi tão difícil essa escolha, tal a variedade de modelos, materiais e finalidades associados a uma coisa aparentemente tão simples como um par de meias.
Há-as para os mais variados gostos e fetiches: altas (a lembrar uma colegial), de compressão (a evocar instrumentos de bondage), de meia canela (assim tipo bandeira a meia-haste, ideal para dias de luto nacional), meias baixas (para quem gosta de as manter escondidas no meio do calçado) e até mesmo perneiras de compressão, que não sendo bem meias, aconchegam o gémeo, deixando os pés entregues a qualquer uma das acima mencionadas.
Uma leitura à pressa nos sites da especialidade diz-nos tudo o que precisamos de saber sobre elas. Em primeiro lugar, que têm de ser leves para eliminar mais rápida e eficazmente a transpiração. No caso dos percursos mais acidentados – trails e estradas nacionais após a época das chuvas – são fundamentais proteger a pernoca das agressões externas e assim prevenir os riscos de entorse. Ah, e mesmo as de compressão devem sempre facilitar a respirabilidade da perna… como se ela sofresse de asma, ou bronquite, sim que há para aí muita perna agarrada ao cigarro e, depois, para respirar é caraças! Sem esquecer, obviamente, que as meias mais altas são sempre uma espécie de 112 para as senhoras que já não foram a tempo de fazer a depilação.
Não sei como é convosco – nem me interessa, já agora – mas eu, por mim, opto por aquilo que na vila minhota onde nasci se convencionou chamar de “meias da Baiona”. Assim designadas por irem desde as pontas dos pés, até às margens da c…. ahn… do pipi, chamemos-lhe assim.
Claro que em sentido meramente figurado, já que a intimidade das senhoras não requer semelhante agasalho, muito menos num ecossistema de temperaturas altas e elevada humidade, como é o caso das corridas. Mas, ainda assim, meias compridas o suficiente para as podermos associar a uma outra Pipi, a Långstrump, entre nós, mais conhecida por Pipi das Meias Altas.
Protagonista dos livros infantis da autora sueca Astrid Lindgren (e, mais tarde, da adaptação televisiva), a Pipi e as suas icónicas meias pelo joelho fazem parte do imaginário dos mais maduros como eu que, algures pelos jurássicos anos 80, enganavam o tédio com as histórias da pequena ruiva, sardenta e de totós, que morava sem os pais, mas dividia casa com um macaco e um cavalo, todos a viverem à pala de uma mala a abarrotar de moedas de ouro.
E se a Pipi não dispensava as suas meias pelo joelho para não entrar em hipotermia naqueles temíveis invernos nórdicos, já eu prefiro usar umas parecidas para assegurar os níveis adequados de compressão nos meus adelgaçados e exaustos gémeos. Sim, que é para isso que elas servem: comprimir gradualmente facilitando a circulação sanguínea.
Só que, ao contrário da Pipi, eu não tenho um camelo de um pai a trabalhar que nem um mouro nos Mares do Sul, que é para alimentar gandulos que só querem andar é de costas direitas. E nem sequer tenho a sorte de um Maquiavel, que ainda hoje paga as mensalidades do jazigo onde repousa à custa dos royalties que o seu best-seller continua a render. Fortuna engrossada mais tarde pela versão infanto-juvenil do seu clássico, o também sucesso de vendas intitulado “O Principezinho” (só para vos testar, acreditem que há muito quem os confunda).
Portanto, comigo as meias têm de ser muito bem aproveitadinhas o que nos leva ao capítulo final desta bonita história: os remendos. Uma espécie de doping para as meias, que todos praticam mas raramente assumem, pois a parte mais visível é sempre a menos suscetível de esburacar, ao contrário das partes de maior desgaste, como é o caso de biqueiras e calcanhares, onde o rasgão é garantido.
A mim vale-me uma forte tradição familiar – três gerações de costureiras – onde fui beber inspiração para remendar as aberturas que vão surgindo a cada 100 quilómetros. Claro que o Jorge não domina a agulha e o dedal com a destreza das avós Chica & Inácia e muito menos de uma mãe Joaquina, pelo que as pobres das meias a dada altura já têm mais remendos do que a cara do paciente favorito do Dr. Frankenstein. Mas o que se poupa em equipamento desportivo sempre dá para ir pagando uns copos aos amigos.
Ou, citando mais uma das frases que Maquiavel nunca disse, os finos justificam as meias.