Conheça as opiniões de um dos mais conhecidos atletas do pelotão nacional. A sua vivência como corredor começou em 1976, altura essa em que correr era bem diferente da dos dias de hoje.
Fernando Andrade:
Antes de mais quero dizer que considero uma honra enorme figurar ao lado das grandes personalidades que me antecederam neste ciclo de entrevistas e quero agradecer o convite formulado, que aceito com todo o gosto, se bem que o meu papel nestas coisas de Corrida, seja apenas o de alguém que gosta de correr, no meio do pelotão, sem nenhuns dotes especiais para eleger a Corrida como modalidade preferida. A Corrida (escrita assim com maiúsculas em sinal do respeito que tenho por ela) é que se tornou muito mais importante para mim do que eu para ela.
Há quantos anos corre?
Trinta e três anos. Desde 1976.
Como era correr nessa altura? Havia muita gente a praticar?
Nessa altura, correr gerava algum espanto às pessoas, que não entendiam o porquê de alguém se pôr a “correr sem ser preciso”. Lembro-me que fui com três amigos meus fazer os primeiros treinos nuns caminhos velhos, afastados da povoação, por termos algum receio das reacções das pessoas. Mas a pouco e pouco, fomos “perdendo a vergonha” e passámos a ir para a estrada. Se havia muita gente a correr? Não. Miudagem havia muita, é certo. Lembro que foi no ano da medalha olímpica do Carlos Lopes, que encheu de entusiasmo a rapaziada que achava poder um dia conseguir igual proeza. A então Direcção-Geral dos Desportos promoveu uma campanha denominada “Desporto à Porta de Casa”, precisamente com o intuito de massificar a Corrida. Fiz um curso de animador desportivo promovido pela referida DGD que visava orientar, com algumas bases, um grupo de miúdos que passei a treinar (cerca de 60). Mas era difícil encontrar equipamento para corrida. As lojas de desporto, mesmo as mais credenciadas, não tinham ténis, nem calções, nem singletes (e as t-shirts ainda não tinham aparecido). Tive de mandar fazer a uma costureira, calções para os miúdos poderem ir às corridas, porque para treinar qualquer coisa servia.
Nessa altura corria-se pelo prazer e pelas preocupações a nível de saúde que hoje em dia se vê, ou por outras razões, como por exemplo à procura de prémios?
Nessa altura estávamos numa fase de aprendizagem dos benefícios da corrida. Sabíamos que mal não fazia, desde que praticada com consciência. No grupo aceitava todos, tanto aquele que tinha grandes aptidões para a corrida, como aqueles que até tinham dificuldade em correr. Ia anotando os progressos, mas nunca exigi que eles se esforçassem em demasia, procurando incutir-lhes o espírito de que a prática da corrida por si só e o convívio que ela proporcionava já era muito bom.
Quantas maratonas já fez?
Fiz 30 maratonas e 4 utra-maratonas (Raide Melides- Tróia)
Qual a que mais prazer lhe deu?
É difícil eleger a que mais prazer me deu. Conheço a da Spiridon (a minha 1ª), a de Lisboa (Dezembro), Lisboa (Abril 2004), Porto (fiz todas) a de Sevilha (11 vezes), Madrid (4), Paris(1), Badajoz(1). Em todas elas tive fases de desânimo e fases de grande prazer ou euforia mesmo. Cada uma delas teve o seu ponto forte:
-Número de participantes e animação – Paris
-Participação ensusiástica do Público, Feira do Corredor – Madrid
-Qualidade/Preço de Inscrição – Sevilha
-Requinte da Pasta Parti – Badajoz,
-Beleza do Percurso e Organização – Porto
-Diferente – Raide Melides-Tróia
E qual delas lhe custou mais?
Em todas elas, houve alturas em que me senti desanimado com pensamentos de “não voltar a meter-me noutra”. Mas a chegada à Meta coloca-nos num patamar de satisfação lá muito em cima e rapidamente esquecemos os momentos maus. Depois, também é verdade que tenho pouco espírito de sacrifício. Se não me está a dar prazer correr, abrando até encontrar um ritmo agradável. O importante é não ir obcecado por uma marca, principalmente se sabemos que não fizemos a preparação adequada. Qualquer marca serve desde que se chegue bem. Lembro que a minha pior marca foi Porto 2007 (4,08) , mas andei a caminhar calmamente durante 4 km, só retomando a corrida aos 36km para acabar em perfeitas condições. E não me envergonho do tempo que fiz. Em boa verdade, as provas que custam mais, são também aquelas que nos deixam maior satisfação ao terminá-las.
Há atletas de pelotão que correm há muitos anos, fizeram dezenas de meias maratonas mas falta-lhes a coragem de se aventurarem numa maratona. Que conselhos lhes dá para perderem esse medo? Compensa a aventura e tanto esforço?
Durante muitos anos , fazer uma maratona era considerado um feito só ao alcance de poucos e talvez isso tenha contribuído para que não se tentasse a distância de 42 ,195km. Só com muita preparação se chegaria lá. Porém, a experiência diz que o autocontrole e um ritmo adequado à preparação feita, permitem fazer a maratona sem dificuldades a quem já tenha algum tempo de treino aeróbio. Quanto a conselhos tudo se baseia no doseamento do esforço e no reforço psicológico para se ultrapassar as fases negativas que sempre surgem.
Qual o maior erro que vê, em termos organizativos, nas provas onde participa?
A valorização do erro depende sempre da perspectiva de quem é vítima dele. Para um atleta de pelotão, que chega ao fim da prova sem se preocupar em que lugar chegou e com o seu saquito de lembranças, pouco lhe importará que no pódio tenha havido um erro crasso na classificação ou entrega dos prémios. Para os atletas de elite pouco importará que mais de 200 corredores não tenham tido abastecimento ou não tenham saco à chegada. No fundo, o que as organizações devem é cumprir com o que definiram nos regulamentos e solicitar às autoridades a segurança dos atletas. E os regulamentos deverão ser elaborados de forma a ir ao encontro da satisfação dos corredores em geral, não esquecendo o público e os patrocinadores.
Começar a correr não é tarefa fácil para quem é sedentário. Que conselhos dá a quem o queira fazer?
Começar devagar (para não ter sensações desagradáveis logo de início) e ir aumentando progressivamente, dando atenção à recuperação entre as sessões.
Felizmente cada vez se vê mais gente a correr do que há uns anos atrás. Pensa ser uma moda passageira ou a corrida vai mesmo “pegar” no nosso país tal como aconteceu noutros países?
Eu gostava muito que a Corrida não fosse uma moda, mas algo que veio para ficar; que a nossa população sentisse os benefícios da prática regular da corrida; que deixasse de ver a corrida como competição mas sim como exercício saudável, fácil e barato.
Blogue de Fernando Andrade: Cidadão de Corrida
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