...

As vacas também correm!

Era inevitável. Dois simpáticos bovinos, dos milhares que povoam toda a ilha do Faial, deixaram-se contagiar pela energia dos participantes no Azores Trail Run e percorreram os primeiros metros da prova de 42km, a Marathon Coast to Coast, lado a lado com o pelotão. Facto caricato, mas ao mesmo tempo revelador da perfeita simbiose entre a prova e a ilha.

De facto, parece que quando Deus plantou o Faial no meio do Atlântico, fê-lo com a intenção de, um dia, centenas de “malucos” terem a ideia de correr por ali acima e ali abaixo.

As vaquinhas seguiram o seu caminho, os atletas seguiram as fitas. Impunha-se a travessia da ilha e eu impunha-me um objectivo único: chegar o mais longe possível. Não confessei a ninguém, nem à minha família: parti para os Açores sem contar chegar ao fim da corrida.

Mas, se em muitas provas de trail, a serra costuma ser um obstáculo a transpor, no Faial a serra é teu parceiro de corrida e tudo te impele a dar mais um passo, a fazer mais um quilómetro.

“Vai ser a melhor prova da vossa vida!”

Não sei se foi a melhor, porque facilmente me apaixono pelos sítios onde corro. Mas sei que foi especial. No Faial há Freita, há Arga, há Abutres, há Estrela. Há escadarias e subidas de martírio e de bradar aos céus, bosques densos, levadas refrescantes, descidas abruptas, lama QB e a sensação única de ficarmos rendidos à grandiosidade da Natureza. (e vacas… muitas vacas…)

Há voluntários simpáticos e esforçados, abastecimentos generosos e verdadeiramente retemperantes, escuteiros que puxam por ti até ficarem sem voz.

Há amigos, muitos amigos: o Vitor e a Ana, o Paulo Gomes, o Pinho e o Meixedo, o Duarte, o Alcides e a Rute, o Pedro e a Xana, que só vi pelas fotografias. O Pedro andou comigo uns quilómetros. Fez os 118Km, com a frescura e à vontade de quem faria o dobro. Ficou em 10º. Acredito piamente que se não fosse a sua típica descontração poderia chegar perto do pódio.

E tudo isto fez-me acreditar que, bolas, era capaz de chegar aos Capelinhos. Corri sempre que pude e como pude. Desafiei as subidas, martelei o chão com os bastões. Corri em cima da Caldeira, de forma infantil, a desafiar o meu equilíbrio, o vento e as dores que me atacaram naquele ponto. “Não, não dói! Corre!” Repeti para dentro e talvez para fora.

Nesta prova, como em tantas outras, por vezes perdemos a noção de tempo e espaço e não sabemos se estamos acordados ou a sonhar. Ou a sonhar acordados.

Talvez por isso, já perto do fim, dei por mim a cantar em voz alta as músicas que passavam no telemóvel: “O Amor é isto! O Amor é isto e nada mais!”, “E pudesse eu pagar de outra forma!”, “Here we are now, entertain us!”

A minha playlist parece que adivinha os sítios onde estou a correr.

Já com o vulcão à vista toca o tema do Star Wars. O som do meu smartphone arrancou um sorriso à Ana Xavier, ela que tantas vezes se cruzou comigo ao longo da prova e que, naquele momento, olhava para a escadaria descendente que se seguia com aquele ar de “outra vez?!?!?!”

Mas, desta vez, não era música, era uma chamada. A Teresa e o Eduardo queriam ir esperar-me à meta. “Venham rápido que estou a acabar!” disse de peito feito. Afinal, o pior tinha passado e, mesmo que não tivesse passado, nada me ia parar e o Faial já era meu amigo.

39km de prova e eu sentia-me soltinho. Ao longe já se ouvia o Joca. O Vulcão estava à minha frente, bastava contornar, abrir os braços e voar. Se as vacas correm, porque é que eu não posso voar?

Ali estava a meta. O colorido. A música. E a paisagem avassaladora do Vulcão dos Capelinhos.

Abri os braços e voei, chorei, ri… chorei e ri muito naquela última descida. Afinal, tinha sido “na boa”, como o Vitor tinha profetizado.

Cortei a meta, o relógio parou, mas a minha meta era outra. É sempre outra. Enquanto recuperava o fôlego junto ao Paulo, vejo ao longe uma silhueta familiar. Acho que o deixei a falar sozinho. Só me lembro de dizer “está ali o meu filho!” e desatar a correr com o andar novo que o Faial me tinha dado.

Finalmente a prova terminava. A minha meta estava ali: sorrisos, beijos e abraços.

“O Papá conseguiu, Dudu… O Papá conseguiu…”

Foto: Paulo Gabriel

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António Pinheiro
António Pinheiro
Profissional de marketing, músico e corredor por prazer. Corre na estrada, no monte e de um lado para o outro na vida, atrás e à frente dos filhos.

3 COMENTÁRIOS

  1. Os meus parabéns Antônio 🙂 , já ouvi muito sobre esta prova e está na minha lista realizar esse sonho. As tuas palavras ainda me deram mais força. Eu adoro os Açores e já morei na Terceira. Fiquei arrepiada pela descrição e emoção do final. Votos de boas e lindas corridas. Jacinta

  2. Muito obrigada pela companhia e por tantas vezes me cederes a passagem, mesmo sabendo que me ías apanhar. Parabéns António Pinheiro!

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