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Nem todos corremos por prazer

No título deste artigo, não me refiro aos atletas de elíte que fazem das corridas o seu ganha pão. Esta é uma história bem diferente. Maria irá participar amanhã na Maratona de Lisboa para mostrar como as mulheres guineenses levam água e lenha para as aldeias. Uma história que nos faz pensar…

No Norte da Guiné-Bissau, encostada à fronteira com o Senegal, fica a povoação de Maria Buinen. A aldeia Suzana, na região de São Domingos, fica longe de tudo. Fica longe da água e longe da lenha que ela carrega à cabeça para cozinhar, dar de beber aos animais e toda a família tomar banho. Maria faz três viagens por dia e demora cinco horas para percorrer 40 quilómetros. E ontem a sua caminhada foi ainda maior – deixou os seis filhos, o marido e os três netos, apanhou o avião e aterrou em Lisboa.

A guineense saiu de Suzana pela primeira vez para participar na Maratona de Lisboa. A prova acontece no domingo e tem a mesma distância que ela faz todos os dias. Leva portanto alguns pontos de vantagem, mas ganhar não é o objectivo. Maria quer mostrar o que fazem as mulheres da sua aldeia para terem água potável e fogão aceso (ver caixa).

Do nascer ao pôr do Sol, cada tarefa tem o seu tempo e todos os trabalhos estão entregues às mulheres de Suzana. “Umas procuram lenha, outras guardam os campos e outras estão nas colheitas”, conta a guineense de 45 anos. Até ao fim de Dezembro, Maria vai vigiar os arrozais. Acorda às cinco da manhã para afugentar os pássaros que comem as sementeiras e é só ao início da tarde vai buscar a água para preparar o almoço da família. São nove quilómetros para encontrar o poço de água potável mais próximo. O caminho de ida e volta repete-se outras duas vezes até conseguir juntar um alguidar cheio de lenha e ainda mais 40 litros de água que ela usa nas outras tarefas domésticas.

As crianças de Suzana também trabalham. Quase tanto como as mulheres. Alcénia é a neta mais velha de Maria, tem oito anos e vai buscar água e lenha quando a avó está no campo: “No tempo das nossas mães não era preciso pôr as crianças a trabalhar tão cedo.” Só que antes havia muita chuva e muito arroz: “Antigamente, a colheita durava três meses e agora é só um.”

O arroz é a base da alimentação de toda a comunidade e a chuva assegura a sobrevivência da aldeia: “Este ano tudo correu mal”, queixa-se a guineense. Caiu pouca chuva, os bichos atacaram o arrozal, a sementeira teve de ser transplantada três vezes e a colheita é feita com muito cuidado para evitar desperdícios: “Um pé de cada vez, cortado à faca, para os bagos não fugirem.” Mesmo assim, o arroz só vai chegar para alimentar os habitantes de Suzana durante quatro meses: “E depois acabou.”

Quando faltar o arroz, Maria e outras mulheres da povoação de São Domingos vão passar a viver das palmeiras. O fruto é usado para fazer vinho e o óleo de palma que mais tarde será vendido nos mercados da fronteira senegalesa: “É o dinheiro da venda que nos vai sustentar o resto do tempo.” Serve para comprar o arroz, para “tratar das doenças” e, se sobrar, para os filhos e os netos continuarem na escola.

A maratona de Maria Buinen não tem meta para cortar. Ela corre todos os dias e, nas últimas semanas, corre ainda mais porque está a treinar para a prova de domingo. Tem ténis novos e quer estar preparada para competir ao lado dos atletas: “É que eu nunca fiz isso.”

Fonte: Jornal i

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Vitor Dias
Vitor Dias
Autor e administrador deste site. Corredor desde 2007, completou 65 maratonas em 18 países. Cronista em Jornal Público e autor da rubrica Correr Por Prazer em Porto Canal. Site Oficial: www.vitordias.pt

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